THE WORLD TO COME, esse “fascinante novo mundo” é devastador: uma lembrança de todo o amor frágil e pisoteado, um romance de fronteira emoldurado pelas quatro estações e tendo como pano de fundo um terreno acidentado, senão a condição humana, o registro das emoções, dos medos, as maiores alegrias ou tristezas penetrantes, isso circunscrito na claustrofobia do mais enfadonho e simples, senão os rabiscos de uma esposa de fazendeiro vivendo uma existência isolada com seu marido taciturno. Tal mulher sofreu perdas indescritíveis, sua solidão e reclusão são quebradas apenas nas tardes de domingo, quando uma vizinha lhe faz visitas. E nas longas conversas na cozinha aconchegante, logo a diretora Mona Fastvold vai se aproximando, filmando tais “sentimentos envolventes”, talvez amizade, talvez amor, celebrando essas mulheres, o novo, o êxtase, porque tais personas jamais viveram essa atração, a paixão, a conexão intelectual. Outrora isoladas em suas próprias experiências, vivendo o mais comum tão-somente com seus pais e irmãos, depois os maridos, isso é completamente diferente, estimulante, a pura euforia!
Então a feminilidade se faz, toda a interioridade da protagonista é revelada através de uma bela e poética narração em voice off, o que torna a escrita ainda mais forte no filme. Vale lembrar que Mona também foi roterista dA INFÂNCIA DE UM LÍDER e VOX LUX e o roteiro aqui também é de Jim Shepard e Ron Hansen (O ASSASSINATO DE JESSE JAMES PELO COVARDE ROBERT FORD) ou seja, a construção dessa narrativa – o tom, o ritmo – é quase hipnótico, muito agradável.
Lá fora dessa bolha, a dinâmica entre marido e mulher em ambos os casais é semelhante – homens dominadores e mulheres que devem servi-los em um mundo hostil e patriarcal. Sim, era o costume, o estereótipo comum e embora se perceba que os personagens amem suas esposas, os homens em si – Christopher Abbott e Casey Affleck – são relegados ao segundo plano. Tal cinema respira mesmo através de suas personagens femininas, ganha vida através de seus olhares, os floreios de Katherine Waterston e Vanessa Kirby, a câmera encantada com elas, muito enamorada, tentando entender o que se passa e o texto muito rápido pontuando esses domingos românticos, as imagens pictóricas em cinza metálico, o grão e a textura inerente ao 16mm, isso nas vastas paisagens, experimentando as mudanças interiores, misteriosas, enquanto passam as estações, esse filme, sem fôlego e surpreendentemente apaixonado.
Contudo, as coisas não acabam bem para as mulheres. Tudo nesse gênero – o cinema queer – está cheio de tristeza turva e finais sombrios. Como se além do amor e do anseio por amor, não restasse mais nada. “Ela segurou o poema entre nós e juntos o estudamos como se fosse um mapa incompleto de nossa rota de fuga. Por fim, ela disse que temia quando ela se aproximasse, eu recuasse e, quando ela ficasse quieta, eu voltasse, mas permanecesse em certa distância, como aqueles pardais que ficam no quintal, mas nunca entram em casa”. Sim, tal mundo é devastador. O filme, idem.
(*) Crônica livremente inspirada da entrevista da diretora, em Veneza.
Contém um trecho do conto “The World to Come”, do livro homônimo de Jim Shepard
RATING: 76/100
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