Casa de Antiguidades

Diante de um senhor escuro, pesado, respeitável, João Paulo Miranda Maria apresenta memorias de um Brasil que se foi e esqueceu de levar a mobília. E ali, na casa vazia e encarquilhada, só os moveis, os objetos, as pessoas que partiram, tudo segregado no esquecimento, segredados em ruidoso silêncio, imagens rodeiam o preto velho (velho boiadeiro?), tal qual relíquias a bailar com o relógio da sala, ou a velha cachorra baleia serelepe em torno da mesa. Então, o filme se encanta de Antônio Pitanga, esse velho ator – em seus imensos 80 e poucos anos -, ele próprio cativante de tais lembranças: tudo lentamente caminhando à metamorfose, o invisível surgindo visível, tempos e dimensões se encontrando em cena. O negro do norte que veio aos brancos do sul trabalhar, sem quaisquer riquezas além das origens de antigos reis e faraós, se encontra na toada neoliberal, entre boatos e maldades, desespero e decisões equivocadas para ali, nesse cinema, com os animais e sua divindade, se transformar e assumir seu lugar de fala. E esse é o conto do boi, o rugido do boiadeiro enclausurados na película (ou paredes?) dessa CASA DE ANTIGUIDADES, senão um velho museu de Bacurau numa cidade de milicos.

E tudo começa em um sonho, nessa casa cheia de lembranças e objetos do passado. Diante do espelho, um velho retrato, se vê um senhor escuro, pesado, respeitável, um personagem com muita experiência de vida e memórias, reflexo da própria casa que se extingue. O rosto, a pele, sua alma, estão marcadas pela idade, talvez como uma projeção de força vinda de seus ancestrais distantes. A história é sobre esse homem rústico, como uma pedra bruta que esconde algo forte e visceral. Então, o filme simplesmente mergulha nessa fenda para descobrir quem é esse homem, o que há dentro dele, seu espírito. Aos poucos, ele se reconecta com suas raízes e, como se essa casa de memória estivesse viva, mais objetos começam a aparecer. Lá fora, o velho se depara com o racismo e a violência sistêmica. A própria estética nos volta aos anos 70 de censura e tortura, como se fosse um retrato muito exagerado de um Brasil perdido no tempo em algum lugar de um futuro antiquado de Bolsonaros. Um lugar que se arrasta no passado pensando que é futuro. A casa delapidada – nossa cultura? -, no entanto, resiste.

E um tanto invisível, quase subliminar, a figura do boi e da vaca percorre toda a projeção, desde o animal explorado na fábrica de laticínios até a maciça máscara folclórica de boi que o protagonista acaba por usar. Ali, todos são gado. Não à toa o berrante mugindo seu corno de vaca, berrando – longo e triste – o chamado da massa, o choro da manada de homens perdidos e marginalizados. Sob seu feitiço, passa os homens, passa o boi, passa o filme, esse lamento de vida que flui na cornucópia de osso e retumba nas ripas dessa casinha de objetos esquecidos, acorda o boi Jatobá e donde mora um senhor escuro, pesado, respeitável. E ele lembra. Isso importa.

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Celluloid Dreams, incluso a entrevista com o diretor
RATING: 68/100

TRAILER

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FILMES · CANNES · TIFF · SAN SEBASTIAN · MOSTRA SP

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