A Mulher de um Espião

Diante de um cinema muito prolixo em formatos e gêneros, pela primeira vez Kiyoshi Kurosawa desafia as trevas da história para – com A MULHER DE UM ESPIÃO – filmar o frenesi de um Japão dos anos 40, todas as suspeitas e demônios sombrios dessa época, incluso aí, o cenário, os trajes e as artes. E ao se aventurar no tema histórico noir, filma o mais novelesco dos gêneros, o suspense de espionagem fantasioso, meio ambíguo, meio etéreo, o filme encurralado entre o indivíduo e a sociedade, o Japão e a Manchúria e visto no eixo de um casal de classe média rumo ao abismo, os dois engolidos pela Guerra do Pacífico.

Mas não, este filme não é sobre a guerra. Como pano de fundo desta história, ela revela o fato inegável de que o Japão cometeu vários atos de violência implacável em solo estrangeiro e pelo qual os dois protagonistas se machucam e choram com essa revelação, e cuja narrativa se revira, os levando a questionar os reais propósitos da guerra. E não é uma pergunta fácil de responder porque, sabemos, algumas foram travadas em nome da justiça, outras tão somente invasões. Muitas como defesa ou orgulho. E é difícil acreditar que tal barbárie foi cometida por política ou soldados ensandecidos, mas de fato houve a guerra, promovida por um império que abraçou a grandeza com unhas e dentes (e jamais admitiu a derrota). E lógico, a “loucura” nacionalista decorrente que se espalha rapidamente entre o povo, dando o endosso ao massacre. E é sobre tal “loucura” que Kurosawa escolheu filmar. E naturalmente mais acessível ao público visto que o projeto nasceu como um filme para televisão, rodado com câmeras digitais de 8k, proporção de aspecto e cores diferentes.

O texto é coescrito por Ryûsuke Hamaguchi (o diretor de DRIVE MY CAR, RODA DO DESTINO e ASAKO I e II) e nos conta uma ficção que se passa no interior do Japão, sobre um casal – Satoko (ela) e Yusako (ele) -, uma viagem dele à Manchúria, em nome do cinema, à sua ambição, mas que, no entanto, desencadeia o primeiro estopim de ciúme na esposa; ela suspeitando do marido trazer uma enfermeira consigo por amor, quando – para ele – depois de alguns dias, tal mulher seja encontrada morta, afogada no lago. Do segredo, o relacionamento do casal muda, vemos a esposa, outrora uma companheira carinhosa, até com leveza infantil, logo se levar pelo instinto, seguindo sua jornada de emoção que só se lê como traição. E depois, o mistério se esclarecendo, a relação retornando às origens, essa reciprocidade de sentimentos de proteção e cumplicidade. Kiyoshi Kurosawa não é estranho ao melodrama, nem a ousada mistura de gêneros e esse é certamente outro exemplo em sua extensa filmografia.

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Nikkatsu, incluso a entrevista com o diretor
RATING: 75/100

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FILMES · VENEZA · SAN SEBASTIAN

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