A Bela e os Cães

Ame ou deixe, A BELA E OS CÃES é uma forte denúncia e nos golpeia com força: um cinema de gênero, que evoca os filmes de terror, embora não seja um filme de terror em si – na verdade é muito mais próximo de um pesadelo, uma historia cruel sob a ótica de uma jovem e – paradoxalmente – trivial entre hospitais e polícia. Um suspense que questiona a humanidade, a empatia dos (vários) personagens, mesmo a dignidade humana. Feito na Tunísia, poderia ser no Brasil, é uma notícia-crime pela noite e – por sorte, graças ou sensibilidade – com as devidas lacunas. Talvez a ideia seja manter um tipo de tensão que fosse realista demais para se filmar, ou um gatilho kafkaniano que fosse traumático demais para se ver. Fato é que dentre todas as suas escolhas, a cineasta Kaouther Ben Hania busque sempre a noção de justiça, um caminho. Uma jornada pela noite em um tempo muito curto, donde a heroína se encontra – apesar de todas as suas fraquezas, do trauma – sozinha diante de uma instituição. É como nos mitos fundadores: um herói enfrentando um dragão, Davi contra Golias, “a bela e os cães”. Há um lado épico nessa realidade, também um filme coreografado em nove planos-sequências, quase um túnel donde a luz (que luz?) se vê apenas no frame final.

Diante da tragédia pessoal da protagonista e, ao mesmo tempo, a insensibilidade das instituições, a câmera se move por diversos personagens secundários e cujo comportamento horrível se justifica pelas inúmeras restrições de suas funções, seja como a administração funciona, a solidariedade dentro da força policial, ou a falta de pessoal nos hospitais. É um tipo de lógica operacional em que qualquer um poderia se encontrar e facilmente perder a humanidade. Daí a tensão construída desse confronto, isso em uma contagem regressiva que termina não com uma explosão – a da própria jovem – mas sim com sua construção, uma noite de luta, do hospital à delegacia, de rejeições e coerções, todo um arco narrativo para um drama de personagem, essa mulher completamente normal, com medos normais, que conta pequenas mentiras e anda bem de salto e, de repente, se vê ali, diante de um machismo ordinário para (re)descobrir sua dignidade.

Um filme que fede testosterona ruim, que revira o estômago, que clama por justiça: a história de alguém entre lutar ou enlouquecer. E ela decide lutar. O frame final sugere isso, quando o véu muçulmano se transforma em uma super capa e a noite cede ao dia nos passando uma ligeira esperança. Talvez não seja o ideal de justiça e reparação que o público espera, talvez nem seja o fim, mas conclui uma jornada e inicia um debate. Nos torna militantes. E nos faz pensar (muito) sobre a “normalização do mal”. Como outrora em THE HUNTING GROUND (Kirby Dick, 2015) ou no livro “Coupable d’avoir Été Violée” de Meriem Ben Mohamed, no qual se baseia essa narrativa, esse é outro exemplo sobre o ditado das instituições sobre a cultura do estupro e, sim, infelizmente um pequeno filme de terror.

RATING: 73/100

TRAILER

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FILMES · CANNES

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