Cavalo Dinheiro

CAVALO DINHEIRO começa em absoluto silêncio, quase um tributo para uma série de fotografias em preto e branco. Nas imagens, várias pessoas estão debruçadas em mesas; homens e mulheres se sentam juntos, empilhados, amontoados; são adultos e crianças, brancos e negros posando em frente de suas casas, os olhos fixos na câmera. Então, logo surge (alguma) cor e o som de passos ao longe: um cabo-verdiano envelhecido, maltrapilho e seminu, desce os degraus pela escuridão como se estivesse a caminho de uma masmorra. Esse homem, Ventura, é a estrela desse filme, também outrora o herói da JUVENTUDE EM MARCHA. Aqui, ele lentamente caminha para um hospital psiquiátrico.

O que segue é a convalescença desse homem: Pedro Costa filma o pesadelo entre o real e o alucinado, o compreensível e o incompreensível. Seu filme vagueia pelo passado e presente, entre os antigos e pobres bairros fontainhas, isso em uma complexa jornada cinematográfica que mostra o protagonista como prisioneiro de sua própria mente e a história portuguesa. E o faz num complexo jogral de fatos e narrativas, num cinema muito lento e muito estático, donde o personagem pontua episódios verdadeiros e ficcionais de sua vida.

As fotografias do começo são de Jacob Riis, um dinamarquês que viveu ao lado de outros imigrantes na Nova York do final do século XIX. Aparentemente não existe qualquer correlação, mas ao vinculá-las ao filme de Ventura – um imigrante pobre que vive em Portugal há décadas -, o diretor tão somente faz uma analogia em busca de uma subclasse escondida. E naturalmente tais fotografias retornarão ao longo da projeção, não como frames perdidos, mas como um eco, um fantasma ou um tableau vivant de uma vida estagnada de gente sentada pensativa em sua casa ou olhando pela janela. A trilha desta passagem é uma canção de Cabo Verde, chamada “Alto Cutelo”, uma balada melancólica sobre um homem que foi trabalhar em Portugal e deixou sua esposa na terra natal. Também poderia ser a canção de Ventura, esse velho alto e solitário, de olhar cansado e barriga inchada, que abandonou seu país (Cabo Verde), também o cavalo (Dinheiro), para trabalhar como operário de construção durante o fim do Estado Novo na ditadura de Portugal.

O roteiro é quase um sussurro, praticamente inexiste: mostra um Ventura confuso vagando por longos e escuros corredores de um prédio sem nome, que se parece em parte com uma prisão, em parte com um hospício. No início, ele diz a outra pessoa que foi diagnosticado com uma doença nervosa. A mão esquerda de Ventura treme, e às vezes todo o seu corpo treme quando memórias dolorosas surgem; em outro ponto, um sorriso corre sobre seu rosto quando ele se lembra da esposa, Zulmira, que segundo ele ainda está em Cabo Verde e a quem ele espera alcançar um dia. O resto é um filme fragmentado, quase um sonho donde o protagonista trabalha seu lugar dentro da história, ele, nascido em uma ilha, vítima da pobreza e testemunha ocular da Revolução dos Cravos, divaga nas memorias, pelo delírio de enfermo ou mesmo pelo tempo. O próprio texto enfatiza isso quando lhe perguntam a idade: dezenove anos e três meses. Sim, Ventura está preso no tempo, talvez esteja num presidio de fato, ou louco, ou tentando desesperadamente lembrar, embora o filme se encaminhe para esquecer. O soldado no elevador constantemente pergunta: “Onde você está agora, Ventura?”, mas ele não sabe, também não sabemos, tudo é um longo e profundo sono, um assombroso cinema chiaroscuro.

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela GrandFilm.de, além da entrevista publicada na revista Cineaste Magazin de 27 de abril de 2015, cedida no próprio presskit
RATING: 75/100

TRAILER & STREAMING


*** video on demand somente com legenda em inglês, espanhol e italiano ***
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