O Conto da Princesa Kaguya


Em estado de graça, o cineasta, o mestre, o gênio, Isao Takahata nos apresenta, tão simples, tão leve, um dos mais belos, significativos e emocionantes filmes que o cinema se propõe ou propôs. E é também uma das obras mais radicais do estúdio Ghibli, incrivelmente universal e, mesmo assim, com a mesma assinatura irradiante (ou encanto?) de uma arte que já nos rendeu Chihiro, Totoro e Ponyo e falo naturalmente de outro mestre, Hayao Miyazaki. E é assim, porque O CONTO DA PRINCESA KAGUYA se desenha na plena impressão do sublime, no sonho inebriante, na obra atemporal que se projeta na memória, pela vida, pela lição, pela força de um talento que acaba de atingir o nirvana artístico.

O que se vê é quase nada, um mero esboço a lápis, sem efeitos especiais, sem 3D. Tudo é tradicionalmente concebido em duas dimensões. O tom é minimalista, ambicioso, nada mais que uma sucessão de planos, donde o mais insignificante é – como dizer? – estonteante. Uma beleza que realça o traço, o contorno de uma pintura que, de repente, ganha vida. A própria linha cheia de vida, um pouco maior para criar emoção, um pouco difusa para criar confusão. Afinal, o rabisco que transpira, tão ingênuo, o trabalho de velhos artesãos, toda uma equipe dedicada, de corpo e alma, para criar esse conto pastoral, esse jardim de fadas, esse palácio reluzente, uma aquarela que se impõe aos olhos.

Então, “era uma vez” a magia, a imaginação, uma fabula de riqueza notável e múltiplas camadas: A história de um cortador de bambu, cuja dadiva é receber uma princesa que veio ao mundo conhecer a miniatura dos homens. E diante dessa calma, dessa serenidade, vemos a menina crescer e crescer nesse Japão atemporal, logo o mesmo conto de emancipação, a mesma lição sobre aceitar seu destino. Sim, muito tradicional, muito puro no discurso, mas nada simplista porque Kaguya é o começo e o fim de uma menina cheia de amor e cuja bela canção – que retorna repetidamente – remete sempre às raízes, à Terra e seus componentes. Como em outros filmes, em outros mundos, ela é uma estrangeira que tenta (em vão?) se incluir no molde de uma humanidade fantasma. E daí descobrir a pequenez do ser humano.

E nesse espelho, ao enfrentar os humanos à sua imagem, no mais triste, mas também no mais bonito, a projeção irradia uma força esmagadora, uma esperança maravilhosa, uma sabedoria suprema. É um testemunho, não apenas para seu autor, mas dirigida a toda a humanidade. Um convite para ver o mundo e como a vida e a beleza se misturam em tudo. As flores de cerejeira, as tigelas de barro, os sapos, os grilos, as folhas. O homem, suas escolhas. Afinal, a existência. E o faz através dessa princesinha, às vezes engraçado, às vezes mal-humorado, às vezes provocando, mas sempre através da promessa de uma vida simples no tronco de uma burguesia cuja seiva se vê ridicularizada. Humor, emoção e energia em milagrosa simbiose. No ritmo que nunca vacila, na contemplação necessária, no frenesi eufórico, esse conto se desenha magistral, em todos os sentidos, em toda a sua natureza. Uma obra-prima cujo destino é – por que não? – a eternidade. Simples assim.

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Wild Bunch, incluso entrevista com a diretor e notas de produção
RATING: 90/100

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ANIMAMUNDI · FILMES · CANNES · TIFF · SAN SEBASTIAN

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