Trópico Fantasma

O roteiro é um fiapo de história: uma mulher que adormece no último metrô e acorda bem longe de casa, lá no outro lado da cidade. E disso surge uma aventura surreal, senão um walking movie sobre o nada, muitos silêncios e vazios, tempos mortos e cenas estáticas e afinal essa mulher por Bruxelas, andando pela noite, o frio, a chuva e outras vidas comuns. Cada rua escondendo em si, um universo que geralmente permanece invisível. E de tantas pessoas-fantasmas que surgem e se vão, Bas Devos filma justamente essa mulher que desaparece, assim como tantas outras que se veem pelas ruas, empregadas, faxineiras ou donas de casa, emigrantes e mulçumanas, que justamente somem pelos filhos, para lhes dar oportunidades que ninguém jamais lhes ofereceu. E assim se faz um cinema de fragmentos, pequenos cacos de gente pela noite. Uma única noite. Como tantas outras de tantos outros.

Neste caso, o filme se desenrola como um breve epílogo para outro tempo e lugar. O andamento se desenrola de forma linear. As cenas se seguem de forma fluida. O ponto de partida é um incidente comum, quase banal: uma mulher que adormece no trem ao retornar do trabalho e se vê perdida, sozinha. A câmera naturalmente a segue retornado para casa, se movendo somente quando a protagonista se move, sua história logo se tornando visível e tangível, ainda que apenas um simples caminhar. Ao longo do percurso-projeção, ela conhece uma série de pessoas. Tantos outros aparentemente insignificantes, um sem-teto, um segurança, um bombeiro, uma gerente de loja de conveniências… tais encontros às vezes sem palavras, até meras observações. Às vezes acontecem conversas. Mas logo se percebe que a jornada é mesmo uma peregrinação: voltar para casa se torna uma pequena revolução. Uma volta. Um salto para o desconhecido. O encontro mais significativo é o de sua filha. Quando ela repentinamente a vê em uma fuga noturna com alguns meninos, logo fica perturbada. Talvez ela veja em sua filha, um relaxamento que pouco se permitiu (e conhece). É uma descoberta.

Ao redor, dorme uma cidade. E é a travessia da urbe que carrega o filme de sentido. Essa andança de metrô, ônibus, carro e principalmente a pé, é ao mesmo tempo uma travessia da extrema diversidade de todas essas vidas que fazem desse lugar o que realmente é: Um cenário conhecido e inesperadamente desconhecido, como o girar de um caleidoscópio, o ciclo do dia e da noite, a cena do apartamento que abre (e encerra) o filme com tão somente a passagem do tempo. A sensação é estranhamente imersiva e melancólica, como se tais imagens flutuasse diante de nossos olhos, às vezes atentos, às vezes embaçados. Um cinema um tanto familiar e misterioso, feito como outrora se fazia, em 16 mm e muito grão para que a escuridão seja esmagadora e potencialmente ameaçadora. E ao mesmo tempo, com suas luzes, haja momentos de maciez e calor. O resultado é um filme que passa longe da trilha batida, quase poético em suas imperfeições. Que do nada surge e do nada desaparece, mas nos deixa ainda uma forte sensação: esse apartamento vazio e sempre vazio porque a mulher, afinal, desapareceu. Dia e noite. Noite e dia.

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela JHR Films.
RATING: 75/100

TRAILER

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FILMES · CANNES · ROTTERDAM

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