Um cinema de eletrochoque, desses que deixam o corpo energizado, os lábios secos, as retinas moribundas e depois nos desintegra por completo, que bombeia o sangue por corredores donde a fumaça nos enche de dúvidas e os depósitos de poeira votam para enlouquecer. Um filme de memórias, de estilhaços, que entra direto pelo olho, lá entre a córnea e o rasgo do canal lacrimal para, ali, fazer pequenas incisões ao longo do lóbulo frontal e cortar opiniões, espreitar o pensamento, cessar o tumulto. Diante da tela, vemos o apagar de um homem, ERASING FRANK diz o título, tão somente o ato de macerar, dilacerar, amortecer um indivíduo e logo escondê-lo nas profundezas de uma sala escura para que o público veja a carnificina, essa experiência visceral em uma realidade kafka-orwelliana que Gábor Fabricius nos propõe, senão um cineasta que manuseia sua câmera como picador de gelo.
A história é inspirada em eventos reais, não à toa se passa em 1984 para nos contar como intelectuais, artistas e outras figuras proeminentes foram internados e maltratados em alas psiquiátricas, ali mantidos sob o pretexto de problemas psicológicos, mas na verdade, sob as cortinas de ferro das enfermarias, sabe-se, eram (outras) prisões. O trabalho de Fabricius foi resgatar essas histórias – pelo menos o que não foi apagado – e assim fazer um filme mosaico, diversos relatos e lembranças fragmentadas, ali reunidas em um único personagem, esse vivendo sob um regime totalitário, talvez na Hungria (ou não), talvez distópica (ou não), mesmo a época, embora dita em algum momento, não é muita precisa. É como se fosse um limbo atemporal, um lugar para se perder em cena, no medo e paranoia.
E no centro da demência, Benjamin Fuchs encarna a contracultura: ele, um cantor underground de profissão, jamais atuou, mas aqui, sob os holofotes, protagoniza o ódio e a raiva contra o mainstream. Ao cineasta, coube apenas filmá-lo nesse intenso laboratório (outro PROJETO DAU?), provocar as reações, levá-lo ao limite para, enfim, apagar Frank. A longa sequência de abertura, um single shot de quase 3 minutos, é um bom exemplo desse (des)CONTROLe, isso filmado sob a “Escola de Budapeste”, como se costumava filmar nos tempos de Gyula Gazdag, Judit Ember e Béla Tarr: um filme em preto e branco, 16mm, aspecto dos anos 70 e 80 afinal. Para o diretor, retirar as cores era essencial para a projeção, essa estética que flerta com TITICUT FOLLIES (Friedrich Wiseman) em uma clara referência e cujo resultado não poderia ser outro: uma experiência imersiva que fica sob a pele, distorce os sentidos e nos deixa em choque. Um filme de resistência para tempos difíceis.
RATING: 72/100
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