Ataque dos Cães

Uma força descomunal, esse ATAQUE DOS CÃES, um produto de contundente aspereza, com paisagens majestosas de um western clássico, não só para atuar como vislumbre estético, mas para agir, embrutecer, dialogar com seus personagens e os envolver completamente, interferindo em seus caminhos. O que Jane Campion traz para essa história, é senão um brilho particular, uma lente arrebatadora e uma perspectiva sobre sexualidade, gênero, beleza e selvageria. E o faz através de Benedict Cumberbatch, ele nessa profunda desconstrução da masculinidade, um personagem que é, para todos os efeitos, alguém totalmente no controle de seu mundo e das pessoas nele, mas cuja superfície sibila algo fora de controle, algo que o mundo lhe negou.

Tantos temas, os princípios do cowboy, a nostalgia, a traição, tornam-se uma mistura intoxicante. A adaptação é do romance homônimo de Thomas Savage, de 1967, e ecoa clássicos como VIDAS AMARGAS (1955) e O SEGREDO DE BROKEBACK MOUNTAIN (2005). Um cinema que explora diferentes cordas da psique humana e suas patologias, incluso aí questões sobre sexualidade reprimida, a vida pacata em um rancho dos anos 20, o convívio entre dois irmãos, Phill e George, eles administrando sua fazenda para, depois, tudo ruir diante da inesperada chegada de uma mulher e seu filho. Isso filmado em tons contemplativos, como a cineasta outrora nos encantou em O PIANO e BRILHO DE UMA PAIXÃO, mas aqui dilatando esses momentos, o poder e a fragilidade do protagonista, o legado do passado e da terra, em um filme donde o homem pode castrar um bezerro com dois cortes rápidos de facão para, logo em seguida, ainda com as mãos cobertas de sangue e sujeira, dedilhar um banjo com cordas de aço muito leve e fino. Disso, da sinergia entre a diretora e seu ator, o ator e sua câmera, vemos um personagem complexo, ao mesmo tempo aterrorizante e brilhante e, sim, profundamente danificado, que oscila entre fúria e astúcia, tão somente para nos provocar, provocar sua nova cunhada de uma forma estranha – ele pairando nas bordas de sua visão, assobiando uma melodia que ela não pode mais tocar -, e o filho dela, o escárnio amplificado pela corja da fazenda.

Não à toa o título inspirado no salmo 22:20 da bíblia (“livrai-me da espada, livrai a minha vida do ataque dos cães”) porque é uma narrativa que ferve e borbulha, muito visceral e selvagem, para falar da paixão como uma forma animalesca. O tal “ataque dos cães” descreve algo instintivo, um turbilhão sexual, cruel, forte e perigoso, exatamente o que Cumberbatch nos transmite: um macho alfa que é homofóbico e também homossexual. O detalhe é a cineasta encontrar as notas escondidas, revolver a terra e intensificar essa sensualidade, a energia, a tensão entre os personagens para, enfim tornar tantas emoções invisíveis em algo palpável. Por exemplo, o tal Bronco Henry que foi seu mentor, aquele que lhe ensinou tudo, por ele adorado, talvez seu primeiro amor. Ele é o fantasma ou o mistério, o passado que não pode ser expresso no presente. Um personagem onipresente, mas ausente da tela, que só se percebe nos sentimentos e pensamentos de Phil, assombrando por toda a história.

Campion tem uma compaixão incrível pelas pessoas e seus personagens, sabe emoldura-las nas sombras e, com elas, nos mergulhar no isolamento que está em todas as dobras da projeção. Seu filme diz muito com tão pouco, ou quase nada: ele se expressa com o corpo e não com as palavras, tão somente para nos contar um suspense de indivíduos aprisionados em um rótulo, um lugar, um gênero, incapaz de sair dele, mas aos poucos tentando sair no seu próprio tempo. Tal olhar torna sensual tudo em que repousa, mesmo uma construção mais lenta que chega ao clímax apenas com um gesto. E então um corte rápido para os cavalos do celeiro para manter o clima (e o público) em suspensão. É uma mudança sútil de poder, uma sedução lenta, um ataque de corações.

RATING: 85/100

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FILMES · TIFF · VENEZA · SAN SEBASTIAN · FILMES LGBT

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