Do eterno drama amoroso entre homens e mulheres, o desenho de um casamento, A HISTÓRIA DA MINHA MULHER, Ildikó Enyedi filma tão somente o suspense rasgado, a melancolia implacável, os segredos na saia do amor e o mais terrível dos tormentos desse fim: a patologia do ciúme. O faz pela limitada história do marido, os diários (ou sete tropeços?) do capitão Störr, um personagem inseguro de si, ele perdido nesse enigma de amar uma jovem francesa, incapaz de sair desse estado obscuro e obcecado pela fera indecifrável que é Léa Seydoux, mas sem compreendê-la ao certo, sobretudo os passatempos boêmios, as brincadeiras do flerte, a formigante forma de pensar. Tão logo, a inércia se transforma em raiva, a paixão engendra as loucas teorias – “minha esposa me traiu, eu já havia adivinhado” -, e a consequência é um filme que perambula atordoado pelo absurdo da existência humana, os apuros do feminino-masculino, e representado aqui com as devidas forças elementares da época, uma atmosfera à moda antiga.
Desde 1989, a cineasta tentava contar essa história, uma adaptação do livro homônimo de Füst Milán, de 1942. Agora, sem a mesma faísca de CORPO E ALMA, nos conta o curso natural de um romance, o começo literal de se conhecer e se acostumar às águas calmas do amor e, depois, com a crescente ansiedade, o ruminar do mar revolto: enfim, a tempestade. A câmera sempre em Gijs Naber e seus impulsos. O filme abre com ele e continuamos prisioneiros do ponto de vista dele durante toda a projeção, acompanhando um homem peculiar que do nada se casou e do nada vai ao mar trabalhar, deixando em sua terra, a esposa, para levar consigo tão-só as dúvidas. O roteiro – assim como o texto original – é um exemplo da majestade e pequenez do ser humano, donde o protagonista é um mundo de maravilhas e inferno. Para ele, verdade e felicidade se contrapõem: o ser moral escolhe a verdade, o ser estético escolhe a felicidade e os dois juntos são impossíveis de coexistir, a personalidade se divide. Logo, estamos diante do Capitão Störr e sua esposa: homens e mulheres, maridos e esposas, amantes e enganadores, e a história nada mais é do que um levantamento da distância que os separa, a alienação presente que está enraizada nos reflexos e nervos, que se esconde bem fundo, lá no ínfimo, mesmo nos momentos mais felizes.
É um bonito filme, de boa música (talvez um pouco longo e lento), construído digitalmente em cenários espetaculares, os cafés esfumaçados, os portos caóticos, esse princípio do século… todas as imagens lindamente emolduradas, mesmo nos momentos de menor vislumbre. O mérito é da fotografia, cujas lentes trabalham o labirinto sensorial do homem, as dúvidas internas através das vagas janelas e espelhos e, ao mesmo tempo, mostrando o pano de fundo característico de um drama de fantasia. No mar seguro, há muitos ângulos retos, imagens simétricas, um azul alongado aos olhos do capitão, muito negros, enquanto na terra, isso se destorce em um mundo mais boêmio e irregular, provavelmente a mesma percepção destinada à sua mulher.
Infelizmente, como o protagonista que opera como se fosse um navio de carga, metafórica e literalmente, lhe falta um tanto de ritmo e certamente um pouco de nuance. Me incomoda o fato de todos falarem inglês, não importa onde estejam e quem são, holandeses, franceses ou italianos, todos aparentemente se entendem. A química já não funciona tão bem entre Léa Seydoux e Gijs Naber, mas o inglês como “língua universal” quebra um tanto da imersão/identificação. Isso nos deixa longe, muito longe, como afinal o capitão de sua amada.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Pyramide Distribution, incluso entrevista com a cineasta em Cannes
RATING: 69/100
TRAILER