Albatros

“Da cozinha vejo o mar, da sala vejo vacas. Estou no meio dos dois mundos”
Xavier Beauvois


ALBATROS lembra ao longe, MANCHESTER À BEIRA-MAR, mas muito além, e muito mais complexo porque segue o cinema dos Dardennes. Xavier Beauvois filma a pobreza pitoresca das áreas rurais, um reflexo sombrio do canto da Normandia onde vive o cineasta. Seu filme cheio de incesto, suicídios e violência doméstica, um Jérémie Renier sisudo, chefe da polícia local, então o roteiro naturalmente segue seu dia a dia, lutando com pequenos grandes acontecimentos, expulsando encrenqueiros do bar, lidando com fraudes em seguradoras, gente tentando se atirar do penhasco, a câmera apenas a observar esse trabalho, as emoções reclusas, as noções de responsabilidade, a consequente perda de controle e, por fim, o desejo de morte, de se afastar de tudo, bem longe, e de novo bem perto de Casey Affleck lá em Manchester. Os dois filmes sobre o luto, o remorso, ambos a dedilhar no melodrama social, nesse cinema rasgado de melancolia. Filmes gêmeos, portanto, separados pelo mar.

O gatilho – ou reviravolta – é a morte acidental de um fazendeiro, morto em um gesto de desespero. Um tiro. Uma artéria. Um erro fatal. E logo uma carreira em frangalhos, a vida em parafuso e o mar… “Ele passaria 300 dias no mar. Ele o descreve como ninguém, sua beleza, os pássaros. Havia mais espaço no filme para isso, para contemplação e horas de pura observação, mas tive que cortar porque ficaria muito longo ”, afirma o diretor. E não à toa, o título francês para o filme – “Albatroz” – isso para marcar a jornada física e psicológica do personagem, a metáfora do homem penitente navegando pelo nevoeiro, pela sorte, dia após dia até tudo estar calmo novamente e de certa forma muito semelhante ao descrito no poema de Samuel Taylor Coleridge, “A Balada do Velho Marinheiro”, donde “a vida é pior que a morte”.

Para Beauvois, o drama é uma tentativa de recontar as crescentes dificuldades da sociedade francesa contemporânea: “Esta é a minha tentativa de capturar o que está acontecendo agora e os policiais estão na linha de frente disso. Existe um verdadeiro desespero. Temos um governo catastrófico. Parece que estamos no meio de uma tempestade com um capitão no leme que não é capitão”, diz ele. Contudo, seu filme vai além da crise social e econômica, é o retrato de um homem em conflito, cuja responsabilidade é gerenciar uma sociedade já colapsada, mesmo no microcosmos de uma pequena realidade provinciana. E isso feito no mais emocional, na culpa e na falibilidade humana, temas tão caros ao cineasta, mas principalmente na ambiguidade de Renier, esse ator perfeito para o estudo de personagem (e a parábola trágica), sua interpretação na fronteira da paixão e neurose, HOMENS E DEUSES, ruídos e angústias, afinal diante do abismo, sobre a falésia e o mar – sempre o mar – diante dele.

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista com o diretor, na Berlinale´21
RATING: 75/100

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REVIEW · BERLIM

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