Em TODOS OS MORTOS se fragmenta em Brasis muitos recortes paralelos: o Brasil da “independência” proclamada; o Brasil do “golpe republicano”; o Brasil do “aroma de café” e do “toque de gado”; o Brasil branco de Isabel, a princesa redentora que diz abolir a escravatura, também o Brasil matriarca de Isabel, a velha que definha sem as devidas massagens no pé; o Brasil comum de Iná, a mulher humilde negra e alforriada ao deus-dará com João, seu filho; Um Brasil fervorosamente cristão, outro de matizes africanas; o Brasil de mulheres abandonadas e homens ausentes; o Brasil do suspense psicológico de Marco Dutra e o mesmo filmado no existencialismo de Caetano Gotardo. Um Brasil de voz, que foi aos Ursos de Berlim, competir de igual para igual e um Brasil de sussurros inaudíveis na telinha do canal Brasil… todos esses fragmentos são torrados, moídos e passado a pano, enquanto os fantasmas perambulam pelas ruas em blocos de carnaval, e a gente – o público – sem saber quem somos, sem entender bem que esquizofrenia acontece, vemos esse Brasil passar, todos (os) mortos.
Então um filme, mas qual filme? Um intertítulo nos situa no feriado de independência, 1899, quase na virada do século. Ali, a sociedade brasileira está em construção, não há mais escravos, os emigrantes estão chegando, vemos mulheres abandonadas em uma “Casa Grande” de São Paulo. A república está prestes a ser proclamada e os negros, depois da euforia, estão mergulhados na crise. Esse deveria ser o contexto, mas o filme de Iná, tal qual é mostrado e pertence, é diferente: Ela está em outro tempo, com o filho em busca do pai que foi trabalhar na construção. Seus trajes são de época, os mesmos farrapos da era colonial, mas os signos ao redor enganam. Há um sinal de trânsito, edificações mais modernas, algo certamente destoa. Logo se percebe duas narrativas sobrepostas, entrelaçadas num conto comum, seriam fantasmas? Seria loucura? “Você é diferente dos outros, deve estar vivo ainda”.
Nesse purgatório se enrosca vários filmes e o mesmo Brasil – e não à toa, pontuado pelos feriados, o natal, o carnaval, finados… em cena, o surgimento da classe média brasileira, todas as crises sociais, um pouco de inspiração de Anton Chekhov e Bertolt Brecht, o declínio da família Soares enquanto adentra a pobreza-pesadelo. Outrora esposa e filhas de rico fazendeiro, nesse filme já perderam muito do que tinham. Presas nessa casa, entre os muros, assombradas pela crença de que têm o direito de possuir tudo o que escolherem, incluindo pessoas e conhecimentos, elas declinam, enlouquecem. Lá fora, a cidade vive alheia, indiferente. A projeção desastrosa do Festival de Gramado enaltece ainda mais esse efeito: Todo esse ruído de construção, a música, o trânsito caótico, engole o que as personagens têm a dizer. Elas estão numa “bolha”, nada o que digam, interessa.
Sim, ainda um filme de texto quase no teatral, bem longe das amarras dos filmes de época – os trajes, cenários, veículos ou padrões de fala –, cujo cerne (toda essa imersão) está unicamente no pensamento das personagens, a sutil sobreposição de tempos e períodos para encontrar um forma sensorial de falar sobre a proximidade entre o passado e o presente. À medida que o filme avança, ela surge aos poucos, elementos de uma São Paulo contemporânea tanto no design de som quanto nas imagens, embora a narrativa continue ocorrendo no final do século XIX. Tais elementos passam um pouco despercebidos no início, quase como algo subliminar, mas depois vão se avolumando, tornando cada vez mais aparentes, indo além do físico, quase num plano espiritual. Tais cenas causam certo estranhamento, a própria cena final explode nossa mente. Então percebemos que TODOS OS MORTOS, de fato é uma história de fantasmas. Nossos fantasmas.
RATING: 72/100
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