Pilulas do Festival de Cannes, 2024

Aqui, pensamentos curtos de alguns filmes do Festival de Cannes que não couberam review completo no site e foram publicados na página do nosso editor no Letterboxd:

TRILHA DOS FANTASMAS (LES FANTÔMES), Semana da Crítica

Sob murmúrios e espectros, LE FANTÔMES abre nas sombras e lá permanece em constante vigília para entender – o protagonista, o público, a humanidade – o que é preciso para seguir em frente: Jonathan Millet tão somente filma as migalhas, as feridas abertas, as cicatrizes de guerra, esse trem fantasma em torno da obsessão do enigmático Adam Bessa em busca de seu carrasco, e o faz em tom minimalista, algum suspense, um cinema que espreita pela Lua e termina em pleno Sol.

SIMÓN DA MONTANHA, Semana da Crítica

Lorenzo Ferro é Simon, a Montanha, o filme de Federico Luis, o cume pelo qual sua câmera escala esse personagem complexo, um drama delicado sobre crescer, amadurecer, se fazer entender, ouvir e ser ouvido. Um cinema extremamente corajoso (humanista?), como tantos outros coming-age, mas esse – vocês verão – é um tanto especial.

QUANDO A LUZ ARREBENTA, Un Certain Regard

Triste e traumático cinema sobre o lidar com o sentimento de perda, as promessas que se foram, o futuro que se esvai, o grito contido em uma expressão, o rosto dessa atriz, Elín Hall, que Rúnar Rúnarsson filma obsessivamente em longos close ups, tempos mortos, luz e sombra, espelhos e reflexos, um tanto frio às vezes, mas o cinema islandês é um tanto distante mesmo.

FURIOSA: UMA SAGA MAD MAX, Fora de Competição

Ainda furioso, caótico, insano, visceral, atordoante, apocalíptico, empolgante, mas… diria, um tanto distante de um DIA DE FÚRIA. O excesso de efeito CGI incomoda, a história demora para engrenar e os protagonistas (que protagonistas?) são engolidos pela tempestade de areia, senão esse universo (e a cartilha de explicá-lo) gigantesco.

OS MALDITOS, Un Certain Regard

Roberto Minervini filma seu faroeste non-spaghetti e o faz sob luz natural, câmera no ombro, o tempo que for, para registrar o diário de seu batalhão, soldados em marcha, nada mais. Guardadas as devidas proporções (e a época), trata-se de um projeto muito semelhante ao JARHEAD, de Sam Mendes: a ideia é captar o tédio, o cansaço, a ansiedade de uma batalha que nunca acontece, esse filme idem, sim, muito bonito, muito quieto, mas cheio de planos mortos, ame ou odeie.

ON BECOMING A GUINEA FOWL, Un Certain Regard

Curioso filme donde um coro de vozes se colidem e competem e choram e se rastejam aos pés de Shula, a protagonista que, do nada, encontra um morto na estrada e desse evento, a Zâmbia se faz presente com todo seu folclore e superstição. Um filme de roteiro que cisca pelo nonsense, a comédia, as memórias, o churrasco e um funeral, que parte surrealista – até parece um sonho, de início -, mas vai se estreitando para um relato contundente de misticismo popular.

CREPÚSCULO DOS GUERREIROS: WALLED IN, Sessão Midnight

John Wick foi à Hong Kong, O TIGRE E O DRAGÃO foi à favela, nesse filme de Soi Cheang: um baita exploitation de Kung-fu com elementos de wuxia, ultra-moderno, caótico e deliciosamente coreografado com sequências gigantescas de pancadaria. A fotografia nesse cenário encarquilhado e repleto de vida, os neons, as cores, o movimento da câmera são impressionantes e disfarçam um pouco os clichê de roteiro.

VÉSPERA DE NATAL EM MILLER’S POINT, Quinzena dos Cineastas

Filme de Natal sem qualquer (nenhum!) conflito, apenas o protocolo da confraternização, propaganda de tender, gente sorrindo, tintins e presentes, nada mais. Poderia ser um horror indie, se você levar em conta que TODOS os personagens estão sorrindo em cada frame (espécie de SORRIA! no feriado de Natal), mas não… é tão somente uma comédia ingênua com piadas bobas e humor “Zorra Total”

RAINHAS DO DRAMA, Semana da Crítica

Como descrever uma mágica? O espetáculo, a energia queer, a interação entre público e filme? Alexis Langlois tão somente filma dois fios desencapados, a relação elétrica entre Mimi Madamour e Billie Kohler e ALL THAT JAZZ e mais: Spice Girls, Britney Spears, Jacques Demy e Vincente Minnelli e mais grandioso e mais grandiloquente e mais barroco: THE QUEENS OF DRAMA nos seduz com seu exagero kitsch, a fotografia ultrassaturada, o auge do romance, o drama definitivo e tudo expresso em canções, cada sentimento e emoção vivenciado em música porque, sim, tal cinema demanda um bom baile e nós amamos o glitter.

RUMOURS, Fora de Competição

Uma taça de vinho, um brainstorm de uma declaração que ninguém se importa, uma crise que nunca é dita, RUMOURS e ruminacões dos líderes do G7 no gazebo, enquanto o mundo acaba e voilá: Guy Maddin faz uma comédia de masturbacões zumbi, talvez seu filme mais comercial, não menos desinteressante, o palco para um elenco brilhar – Cate Blanchett em destaque – e um roteiro de boas piadas para rir e pensar

AS MULHERES DA SACADA, Sessão Midnight

Um longo – e bonito – travelling inicial sobre as varandas de um condomínio, sugerem JANELA INDISCRETA, de Hitchcock, embora o tom aqui seja outro: uma comédia? uma novela? um panfleto feminista? uma história de fantasmas? Noémie Merlant não escolhe o caminho mais fácil, mas o faz com personalidade. Seus personagens tem carisma, um Sol que ilumina a tela e nos diverte, embora também faça pensar.

SELVAGENS, Sessão Especial

Cláudio Barras segue no seu fascínio em capturar o olhar (e sentimento) de uma criança no problemático mundo adulto, aqui, novamente em uma animação de muita textura, e falo não somente da técnica em stop-motion, mas da riqueza de detalhes em transmitir o conhecimento indígena em uma didática acessível aos pequenos. Sim, não se compara à MINHA VIDA DE ABOBRINHA, mas segue nos mesmos temas de perda e família, agora sob um viés ecológico.

LA PAMPA, Semana da Crítica

Drama LGBT francês sobre aceitação, iniciação sexual e motocross, nada de novo, uma história mil vezes filmada, mas que funciona pelo jovem (e viril) elenco e um roteiro honesto, sem muitas firulas cinematográficas, apenas esse conto de brotheragem no inóspito (e retrógrado) ambiente homofóbico do interior.

GHOST CAT ANZU, Quinzena dos Cineastas

Anime japonês que mergulha no fascínio da fantasia Ghibli, sem ao certo sê-lo, mas funciona para os amantes desse universo mágico onde é possível (con)viver com um gato fantasma, um sapo acumulador, um guaxinim guerreiro, entre outros espíritos da floresta, isso ao lado de uma garotinha em busca da mãe. Ricamente filmado, daquela natureza desbundante que os japoneses tão bem sabem animar, ainda vale pela deliciosa (infernal?) sequencia de perseguição final, daquelas de fazer Tom Cruise sentir inveja.

MEU NOME É MARIA, Cannes Premiere

Jéssica Palud revisita os eventos/tragédia dos bastidores de O ÚLTIMO TANGO EM PARIS, filme de 1972 de Bernardo Bertolucci, e promove um (feroz) panfleto feminista ao dar voz à Maria Schneider, na tela, Anamaria Vartolomei em todos os sentidos notável. A cena em si, o horror proposto com ajuda de um pacotinho de manteiga, é uma sequência chocante de gatilho, mostra a violência aos olhos da atriz, no chão, humilhada, envolta por um bando de cafajestes e repercute toda uma jornada destrutiva. Grande filme sobre um triste acontecimento.

BABY, Semana da Crítica

De cara, BABY é melhor, mais coeso e bem mais produzido que CORPO ELÉTRICO. Se outrora o cenário paulista fosse o Brás, agora o foco é a região da República, os bailões do Arouche, os cinemões da Av. São João e a forma como Marcelo Caetano nos imprime essa paisagem urbana, não só a fauna queer, mas o dia a dia da cidade é de encher os olhos. O faz sobretudo sobre cores e lentes de Almodóvar e um DNA legitimamente brasileiro: os protagonistas estão excelentes, dá tesão vê-los em tela e o público acaba torcendo junto com seus perrengues. Eu quase, quase soltei uma lágrima no final, vontade de fazer que nem a Mia Farrow em ROSA PÚRPURA DO CAIRO e ir morar com eles.

LOUCOS POR CINEMA!, Sessão Especial

Relato genérico sobre o fascínio do cinema, feito como vídeo institucional.

AS ARMAS DE PLÁSTICO, Quinzena dos Cineastas

Jean-Christophe Meurisse segue na sátira, nas piadas cínicas e niilistas, no algoritmo gore para nos chocar ou (talvez) fazer rir (de nervoso?), mas nada além do (já fraco) LARANJAS SANGRENTAS, esse inclusive é ainda mais caótico e gratuito, imerso no pseudo-intelectualismo, bobagens pitorescas e visões xenofóbicas, um amontoado de interpretações over e um texto que sugere, mas muito, muito, muito longe o argumento de Elio Petri em 1970, INVESTIGAÇÃO SOBRE UM CIDADÃO ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA e donde o crime – me desculpem – é comparar esses dois títulos porque não existe comparação, somente um abismo entre cinema e tentativa de fazê-lo, mesmo em comédia.

A HISTÓRIA DE SOULEYMANE, Un Certain Regard

(Outro) filme de guerrilha realista, a câmera apressada no corre diário, no trabalho por tostões, na (dupla) jornada clandestina pela sobrevivência e assim por DOIS DIAS, UMA NOITE, como se fosse um cinema dos Dardennes, mas não é… é A HISTÓRIA DE SOULEYMANE, sem tempo a perder, sem dinheiro, sem cama, sem (qualquer) descanso, e donde o roteiro insiste nos percalços, na entrega literalmente de Abou Sangare, esse não-ator que nos comove, nos aflige, nos tenciona nessa tentativa de contar sua história – a verdadeira que se vê na tela, a criada para se alegar na imigração, e ambas um suspense social cujo desenlace é perturbador: simplesmente um monologo nervoso, tremido, que nos envolve e nos faz reviver o drama que, um dia Matteo Garrone filmou em EU CAPITÃO, mas agora Boris Lojkine nos conta melhor em algumas linhas de texto e uma simples cena de plano e contra-plano, nada mais, o suficiente para nos destruir no (aniquilante) silêncio monumental e um corte abrupto para nos dizer que a história desse personagem ainda não acabou.
(E não à toa os créditos finais, porque o filme é todo de Abou Sangare)

Article Tags:
Article Categories:
FESTIVAIS

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.