Rapito

Marco Bellocchio foi aos porões da Igreja Católica para resgatar um conto verídico – o sequestro infame de um menino judeu pelo Papa – e filmá-lo com requintes de melodrama e suspense político. Impecável na reconstrução de época e cenários, minucioso na sua narrativa, o cineasta cola sua câmera nos personagens para captar o mais íntimo deles e o faz questionado os (muitos) dogmas da Igreja. A trilha é um exorcismo à parte.

A intenção é, sobretudo, dramatizar esse crime, a entrega de uma criança, afastada de sua família e entregue sob custódia da Igreja por “ser batizada” – é o que afirmam – e depois, criada em outro lugar, longe de sua linhagem, da comunidade, da religião, para ser educada na fé cristã. A ordem veio de Roma, por vontade direta – está implícito – do próprio Papa Pio IX. Também um delito contra os familiares, gente moderadamente abastada, respeitosa da autoridade, num momento em que sopra na Europa um vento de liberdade, onde os princípios liberais são afirmados em todo o lado e onde tudo está a mudar. O rapto, portanto, simboliza a vontade desesperada e ultraviolenta de uma establishment em declínio que tenta resistir ao seu próprio colapso através do contra-ataque. Um breve espasmo de domínio sobre as consciências.

Há uma violência implícita nesse ato: a consternação do pequeno, da sua dor após a separação forçada, também seus esforços para procurar se desdobrar entre a vontade do Papa e dos seus pais, ferozmente sua mãe, o poder insensível frente ao desespero indefeso, a aceitação ou a saudade, o que torna a dramaturgia cinematograficamente gigantesca, a grande história em sua pequena história porque fala muito sobre a Itália, a intolerância, o totalitarismo… um cinema feito com raiva, constantemente sob tensão, quase em fúria obsessiva pelo panfleto, esse brinquedo ideológico lançado em um tabuleiro grotesco, com regras (que regras?) quase sempre injustas. Nunca se viu um vilão tão monstruoso como o qual Bellocchio filma, na tela um Paolo Pierobon denegrido, satânico, repelente, repugnante. Diante dele não há final feliz, nem missão de regresso, só história, uma triste história que esqueceram de contar.

RATING: 74/100

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REVIEW · CANNES · TIFF · ROTTERDAM

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