O Farol



Por Eduardo Benesi

O impacto é inevitável. Claro que já vi gente arrogantizando mas desses os pássaros se vingarão. Vi sobretudo a aclamação em grande escala, justo seja – inclusive crítico colocando entre os 5 do século até aqui. Estou aqui vivendo um dia de formatura dentro de uma cápsula entusiasmada. É como se eu estivesse recomeçando o cinema de outros modos não incólumes, habitando um anti-sentido, achei um porão e quero ficar um pouco mais. É como se a nota 10 não fosse mais uma nota segura para uma obra que ao longo dos dias irá inflar minha psiquê e intoxicar meu mundo onírico num balançar de sinos exaustivos. Isso me faz repensar inclusive no conceito de qualificação de um filme, sempre fui o precavido do 9,5, porque uma nota se auto-relativiza com o passar dos dias – um longa cresce e você já havia dado o 10 de primeira e agora? Penso na matemática indignada se sentindo desmentida pelo tempo. Mas a nota máxima dessa vez é uma impregnação inevitável e sem apêndice, explicarei os motivos.

Começo pela neurose sensorial, a aliteração sonora daquele alarme do farol ainda surte ressonância em mim, aquelas sereias tão etéreas e perigosas se afirmam como musas surrealistas em plena revanche axiológica. A figura da mulher encontra pungência numa coadjuvação implícita, em uma protagonismo-satélite. Isolar dois homens em um retângulo-insular e destruí-los em vários estágios simbólicos fez para mim um sentido não apenas artístico mas antropológico.

A masculinidade ali parece exposta a uma purgação, um acerto de contas, o falo aponta para si e coloca em cascata a fragilidade. Dois búfalos que se chifram em um (des)casamento trágico na perfeição exata de tempo, aquela que agrada a um millennial cansado: uma hora e meia de cerimônia. Dois homens em uma jaula imaginária, dois itens predatórios em um confronto-espelho, a destruição versos ela mesma (frase contém ambiguidade). Dafoe e Pattinson parecem duas partes constituintes de uma mesma matriz, no pacto de interpretação ambos se oferecem como entidades predicativas de um mesmo transtorno trági-poético, de uma consciência una. Nesse experimento a insuportabilidade alcança decifração em várias pulsões: a de morte, a sexual, a destrutiva, a imperativa e a (homo)afetiva.

O ódio é um treino para o esconderijo. A sujeira da existência é posta bruscamente em um jogo conspiratório intimista que quer investigar tanto o todo quanto os intervalos, tanto o visco quanto a proteína oculta. O detalhamento retém literaturas insidiosas. Somos capazes de ver a bússola da retina de Dafoe presumindo um perigo pós-sono e vê-lo mastigar como os animais mastigam. Um ator faz da ousadia a própria vaidade, nos desvenda o peido como um código de repulsão sexual e de útil-cumplicidade a um homem diante de outro. Já Pattinson nos dá a si como uma pintura em carne-viva, está entregue ao flagelo da devoração, é capaz de subestimar o azar e ser mais cruel que o estilingue, de ser ex-vampiro e aprender que um ator só se encontra definitivamente quando não tem nada a perder, quando perde inclusive a câmera, mas sabendo exatamente aonde ela está. (Aliás, eis um exemplo de artista que entendeu a importância de um bom agente e parece interessado em ter uma boa curadoria de repertório em seu currículo).

Ouço muito dizer que a fotografia P&B é a mais vulgar das elegâncias, porque abastece a imagem de uma higiene qualitativa que favorece o bom julgamento sobre um filme. Enquanto clichê estilístico acaba se tornando um marcador prepositivo de competência. Mas em O FAROL há uma desiginiezação que se cumpre em paralela sincronia com a perfeição das imagens, há um apelo escatológico que rompe com as boas maneiras enquanto o filme ainda se conserva elegante. Vejo um auge cromático procurando servir ao esteta sem fingir boas maneiras. A imagem sabe brincar (e rir) com as próprias ambições. São distorções rítmicas, perspectivas e comportamentais.

Roger Eggers debuta o seu balcão de referências sem se tornar impostor de sua originalidade. A desorientação do inconsciente é talvez a chave mais profunda do audiovisual, faz a nossa inquietude piorar pra melhor, o medo atravessa a intimidade ( antes alocada na proteção representativa do sujeito social e suas restrições). A vontade reprimida parece exposta de modo que não existam homens dentro de armários mas armários dentro de homens.

Acender um cigarro depois desse filme é como celebrar um gozo-epifânico, mal sei eu ficar em mim, ou a diferença entre acordar e sair do cinema, de certo anotarei meus sonhos nas próximas noites.

RATING: 100/100

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FILMES · CANNES · TIFF · SAN SEBASTIAN · RIO · MOSTRA SP

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