Zona de Interesse

ZONA DE INTERESSE abre nas sombras e por lá caminha sorrateiro. Abre em sons bucólicos, um ingênuo piquenique no lago, uma família em vida de sonho e logo parte para uma casa germinada ao lado do campo. “Não há mal algum”, você pensa. De fato, Jonathan Glazer filma o mais banal, os afazeres exangues, a rotina esterilizada, a vida mundana, o faz em tons pastéis, um filme extremamente iluminado. O horror são os ruídos extracampo, esse som de fábrica a martelar, gritar, guinchar. Vez ou outra se ouve um trem. Há uma outra história aqui, mas você não a vê. O cineasta esconde essas atrocidades além dos muros, do campo de visão, o faz em uma própria linguagem (dis)torcida, despojada e reconstituída em débil eufemismo. Então, um filme sobre personagens que se recusam firmemente a enxergar o que acontece diante de si, vivendo em uma bolha de negação ensolarada. Sim, é um filme banal, mas sem banalizar sua gravidade ou diluir seu poder de nos perturbar.

Em um rigor estritamente formal, a câmera rodeia o lado civil de Auschwitz, nos mergulha em um mundo “comercial de margarina”, cujo apelo visual e estético é tão somente as vítimas periféricas da selvajaria, a bem cuidada e próspera família Höss, cujo patriarca (Christian Friedel) é o comandante do campo. O terror – ou falta de – está no arrendamento generosamente subsidiado deles, essa vila imaculada de estuque de dois andares, que justapõe uma fantasia ariana sobre as realidades do pesadelo donde as quais foi (literalmente) construída. O amanhã pertence a eles, parece, só isso importa: em uma cena, a esposa (Sandra Hüller) explica que planeja cobrir os tijolos expostos do amplo quintal com hera, “Os judeus estão além dos muros”, acrescenta, como se fosse espontâneo, ou uma colônia de férias, uma verdade repleta do mais monstruoso tipo de negação. Logo é um filme-refúgio, um Éden substituto donde a vida luta pela normalidade enquanto o acampamento ondula em nuvens de morte, “grinaldas de fumaça sob um céu azul silencioso”.

Dada a facilidade do cineasta em criar visuais austeros e aterrorizantes, seria razoável esperar um tratamento similar na adaptação do livro homônimo de Martin Amis. Sim, mas não da maneira que se poderia pensar… ao invés de representar o evento, como outrora Alain Resnais (NOITE E NEBLINA) e Steven Spielberg (A LISTA DE SCHINDLER) o fizeram, Glazer opta por uma forma ousada de inversão, ainda trabalhando sobre materiais históricos rigorosamente pesquisados, mas remodelando a narrativa, como já o fez na experimentação puramente alienígena de SOB A PELE, aqui ele disseca o argumento em dois pontos ao mesmo tempo impiedosos e inocentes, de um lado a imagem plácida sob uma luz natural, do outro o design de som que narra o oposto. E é justamente dessa compartimentalização como princípio arquitetônico e psíquico, a mistura de domesticidade aconchegante e paranoia flutuante, a principal “zona de interesse” do cineasta para nos incomodar: um efeito subliminar, mas misterioso, criando uma estética íntima, mas distanciada, que testa a tensão entre controle e espontaneidade. Simples (e genial).

RATING: 89/100

TRAILER

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FILMES · CANNES · TIFF · SAN SEBASTIAN · MOSTRA SP

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