Annette

BOY MEETS GIRL. They sing. Drama. O resultado é ANNETTE: um cinema de estranheza, um enervante manifesto sobre homens abusivos, a exploração na indústria do entretenimento, o tédio e a morte do showbiz, isso sob a partitura pop barroca dos Sparks, assim para salpicar o filme de Leos Carax de mais tragédia, mais romance, mais sublime poesia, e nessa excentricidade sonora, ame ou deixe, velejar por um bizarro objeto cinematográfico que constantemente flerta com a ruptura, a repulsa, as lacunas, ele assombrado pelos deuses de HOLY MOTORS, o (des)encantamento sempre nesse Adam Driver furioso, completamente nu em cena, e que vai sugando toda a energia dos que lhe cercam, também da própria projeção que morre aos poucos, se arrasta em tamanha obsessão, sem consensos, sem lógica, como se estivesse (e de novo) no “teatro do oprimido” de Augusto Boal, tão logo um aborrecimento aos “espect-atores”, mas não é, naturalmente.

Aqui as intenções são bem claras desde o início: do convite inicial ao público para cantar, rir, aplaudir, chorar, bocejar, vaiar ou peidar, mas somente em sua cabeça e em completo silêncio até o final do show (que certamente vai provocar o oposto), já no inusitado canto de abertura, a completa quebra de quarta parede, esse palco de cinema invisível já nos prepara para o truque, um filme sem que ninguém, exceto os atores, venha a saber que se trata de uma encenação. E eis a provocação: o público é constantemente manipulado aqui, como se houvesse cordéis invisíveis a reagir, um fantoche diante de uma peça de cinema, não à toa esse circo midiático, as canções que surgem para “nos guiar”, as coristas que aparecem para nós cantar (ou cobrar?) as risadas que naturalmente não existem, mais adiante, um publico cenográfico surge para esculhambar o protagonista sem saber que, extra tela, outro público faz o mesmo com o filme. E é muito engenhoso como Carax nos envolve nesse (pseudo) debate, isso na própria Hollywood, nos mobilizando – ainda que ignorantes – nos limites do que é/não é entretenimento. Nisso, a produção deixa algumas pistas teatralizadas, borra algumas realidades, o fato de ser um musical atenua essa percepção de representação, mas a primeira cena é fato uma delas, existem outras como a famosa apresentação de cunilíngua onipresente em todos os textos críticos, sem falar do evento do parto, a opera-valsa no iate, o intervalo do superbowl, a própria representação da bebê Annette, são imagens nitidamente para provocar, a celebração do “Razzle Dazzle”.

O outro tema nos insere no turbilhão febril do amor conjugal, particularmente em um relacionamento de masculinidade tóxica. De novo Adam Driver na HISTÓRIA DE UM CASAMENTO, de novo dele é a culpa do divórcio, mas ao contrário do filme de Noah Baumbach, donde Scarlett Johansson co-protagoniza o espetáculo, aqui Marion Cotillard literalmente some. Ela, uma cantora de ópera que morre por seu público todas as noites, ensanguentada, autoconfiante e tão tímida, surgindo vez ou outra para nos salvar com a morte no palco. No contraponto, Adam segue atrás, nas sombras, no stand-up barato, as garras estendidas sobre a amada como no início do segmento “We Love Each Other So Much”, mas é dele o pleno protagonismo. Porque ele é o homem. O homem alpha sob os holofotes. Completamente nu (ou quase) em cena, assim para projetarmos o desprezo, a indignação. Suas cenas são abomináveis, de uma monstruosidade que Denis Lavant não foi capaz em HOLY MOTORS. Me pergunto o porquê de tais encenações que quebram completamente o fio narrativo, que surgem do nada e envolve o vaudeville em um obscuro vazio, sugando qualquer bom momento que possa existir… cócegas, ele diz fazer: torna-se um tormento, mas fundamental para a construção do personagem, do enredo e da raiva do “espect-ator”. Só assim funcionaria. Leo Carax tão somente filma o dedo na ferida e roda o microfone em nossa cara.

RATING: 75/100

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REVIEW · CANNES · MOSTRA SP

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