Sempre interessado na violência humana, nesse cinema de tormento e êxtase ou na gênese antropológica da crueldade, Agustí Villaronga vai agora aos porões de uma tragédia histórica para encenar o conto homônimo de Alessandro Baricco, EL VENTRE DO MAR. E novamente, como outrora em PÃO NEGRO (2010), O REI DE HAVANA (2015) e INCERTA GLÒRIA (2017), ele chafurda no lodo (i)moral da sociedade, o avesso de gente profundamente ferida em seus ajustes de conta, as vãs tentativas de sobrevivência e os segredos mais sórdidos, isso no terror diário de perder o pouco que lhe resta. Em seu filme-palco, o naufrágio da fragata La Méduse em 1816, a história de 147 sobreviventes desesperados, amontoados em uma jangada de 12×6 metros, todos encalhados no mar pela inépcia de seu comandante Joseph François Raoul. Então, um cinema que encarquilha, resseca, apodrece lentamente – e muito lentamente – aos nossos pés, eles chapinhando na água rasa ou atirados ao mar bravio, corpos afogados ao fundo, do passado ou do presente, não importa porque a correlação com os precários botes de refugiados que agora navegam pelo Mediterrâneo é muito explícita.
Uma projeção clandestina que nos induz ao inferno, tal qual Lars von Trier fez um dia com DOGVILLE, mas aqui tão somente a regra da violência física e emocional de um ambiente podre, o microcosmo donde a luta pela sobrevivência se dava através da ingestão de fezes, canibalismo ou pior, situações de aberração como as sempre encenadas pelo cineasta. Os sobreviventes, após dias de sofrimento indescritível, foram 9, resgatados por um navio que passava. A tragédia também foi tema da pintura do francês Théodore Géricault, “Le Radeau de la Méduse”, ao qual o filme empresta em parte sua concepção e tons sombrios.
E sim, um discurso de monstruosidade e ambiguidades, preto e branco, embora não tão assustador de se ver: o terror fica mesmo no imaginário, em uma peça experimental de muitas evocações literárias e pictóricas. Essencialmente o embate de dois sobreviventes do naufrágio em um monólogo de teatro e cinema, os traumas de um oficial e um marinheiro, ambos à deriva na acareação dos fatos. Licença poética à parte, o marinheiro é negro, um toque contemporâneo para aguçar a metáfora entre o ontem e o hoje. Também se quebra a quarta parede para que você – o expectador – seja juiz: e a sentença naturalmente é tesouro e maldição, um monstro que cresce dentro de cada personagem e engole qualquer esperança dentro de um contorno surreal. E de cena em cena, no garimpo do medo e da ternura, encenado em seus túneis, artefatos, barris e cisternas, o público vai descobrindo uma peça claustrofóbica e sobretudo inquietante. Ame ou deixe.
RATING: 75/100
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