The Year Before the War

Ninguém sabe… pode ser um sonho, uma viagem, um filme até o fim do mundo, um biscoito, uma oração ou psicanálise existencial. O que realmente aconteceu? Havia um homem que falava para um peixe. Ele queria saber o mistério da morte, então se afogou e nadou com o peixe. Depois surge outro homem de lugar nenhum, “sem qualidades”, diria o romance inacabado de Robert Musil. Ele é Peter, mas se chama Hans, um típico letão, nem trágico, nem cômico, desses personagens que se sente atração e desdém. O homem diante do peixe é seu pai, ele próprio é o porteiro diante do hotel que se confunde com um terrorista, então se envolve nos planos revolucionários de comunistas, anarquistas, protofascistas e nacionalistas. Ele é baleado e forçado a cometer assassinato, tem um romance com a espiã Mata Hari e está no divã de Sigmund Freud. Isso em 1913, donde o mundo é tão recente que muitas coisas carecem de nome e donde milhões em breve marcharão para as trincheiras. E é curioso como tudo acontece, os objetivos, as vozes, a realidade, toda esta sedução que nos atrai e nos conduz, que perseguimos e mergulhamos e gira e rodopia em nossa cabeça como se a realidade – ou não mais o sopro do real – fosse apenas o que pensamos ser, o que lembramos e esquecemos, as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos… e tudo a borbulhar no gelo fino de um filme de reflexões niilistas. Olhe ali, o peixe! E Freud explica: o peixe é o “phallus”. O ato de nadar significa uma tendência para homossexualidade latente. Pescar significa o intercurso sexual. Segurar o peixe significa a masturbação. Tudo está claro, não está? Logo o pai simboliza um desejo de castração e ele quer matar esse pai, mas não pode. Então o filme seria um sonho, é isso?

É mais complexo: naturalmente a Europa adormece sob às forças monstruosas que se contorcem no limbo, há algo faltando em tudo, como se houvesse uma mudança no sangue ou no ar, uma doença misteriosa corroendo a sanidade ou a certeza narrativa desse filme que o próprio título diz, antecede a guerra em face dos novos engenhos intelectuais e científicos. Seria um período donde tudo brilha com a novidade, mas não o é porque ninguém se importa, todos estão afoitos demais com seus ids, egos e superegos. Davis Simanis tão somente filma essa jornada psíquica: um homem, seus pensamentos e o tempo antes do arquiduque Franz Ferdinand ser assassinado. O faz numa hipnótica fantasmagoria, como outrora fizeram David Lynch e Guy Maddin, UM MÉTODO PERIGOSO diria Cronenberg, mas que aqui abraça a hipérbole erudita por meio de referências lúdicas, figuras históricas e a própria paranoia do cinema soviético.

O resultado é um cinema peculiar, originalmente idealizado em cores, mas cujo corte final nos apresenta um thriller em preto & banco com tintas surrealistas, um circo bizarro donde o ator – Petr Buchta – é extremamente capaz em caracterizar a maneira lógica pela qual os pensamentos e percepções de um homem que pensa progridem, chegam ao clímax e começam novamente em outro lugar, como se tudo fosse um caleidoscópio de incertezas (ou um sonho?). E o filme nessas dúvidas e fluxos, o protagonista no trem-fantasma de suas percepções, em guerra fora e dentro de si, indo da racionalidade à imaginação e o público ali, se perguntando no chiaroescuro: Tá, mas e o peixe? Ninguém sabe… é o diabo!

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista com o diretor, em Rotterdam | Contém trechos de “O Homem sem Qualidades”, de Robert Musil; “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez & “A Interpretação dos Sonhos”, de Sigmund Freud
RATING: 74/100

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REVIEW · ROTTERDAM

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