Liborio

Um filme de tradição e resistência que se passa num transe, a marcha de LIBORIO que desapareceu no furacão e retornou profeta e com ele, vieram as pessoas, os filhos, os camponeses, todos para saudar esse ritual de cura e tambor de mina, ali para levantar os mortos da “nuestra tierra aguada y bendita” e fazer dessa experiência, um cinema-encantaria que invoca e expõe a figura do salvador que transcendeu o tempo e se tornou um mito. Então, Nino Martínez Sosa filma em sua estreia, uma jornada de vida, o desafio de um missionário que enfrenta seu destino, seus pontos fortes, suas fraquezas e seu mundo, à medida que todo o redor continuamente desmorona. E o faz num desafio pela história à medida que filma o santo, o patriota, o político e todo seu filme nessa batalha épica entre o material e o imaterial, os mistérios da vida e suas contradições. Um réquiem que gera imagens e sons que agem por sua força para impressionar e espelhar o espectador.

Dessa pajelança entre a história e as histórias, a narrativa se mantém sobre o verídico, a própria vida de Olivorio Mateo, esse camponês dominicano que no início do século XX formou uma comunidade religiosa na fronteira dominicano-haitiana e acaba assassinado pelas forças de ocupação norte-americanas. Diz-se que ele nunca morreu e ao longo do tempo, movimentos semelhantes surgiram na região. Daí o filme, a figura mítica deste homem ainda ser objeto de culto, donde muitos ainda descrevem encontros com Ele, em sonhos ou por posse. A câmera nessa frágil manifestação, seguindo os passos e os vestígios do movimento, incorporando o povo participante na narração das suas próprias histórias e, assim, validando a memória coletiva com seus rituais, suas canções, rezando suas orações e resgatando toda essa manifestação única de cosmogonia caribenha, sempre destacando o passado cultural e violento.

Logo, tudo e todos são bem-vindos. É o sincretismo daqueles que não têm nada, mas compartilham. Contra as crenças que constroem paredes para separar umas das outras, o Liborismo se une e encontra sua força desta união. E é dessa dádiva, que Nino filma com suor e vida, o triunfo dos desamparados, o desejo de mudança dos perdedores desse conflito pelo qual se luta há séculos, a posse da terra, o controle que os camponeses têm sobre sua própria vida, a esperança que nunca morre. O protagonista se torna a comunidade, o olhar tão somente é o camponês desamparado, a sombra que nos liga ao inconsciente coletivo.

Diante da liberdade caótica que a linguagem cinematográfica nos dá para buscar sempre a eficiência narrativa, o filme se foca apenas em um único personagem de cada vez, ancorando nosso ponto de vista para ganhar subjetividade e expressividade. Daí as sete cenas do poema, a estrutura fragmentada e episódica. Histórias dentro de histórias. Pedaços de subjetividade que seguem a forma desordenada que se usa no Caribe para falar, construir ideias e contar seus causos. Um retrato poliédrico da comunidade em que todas as peças são necessárias para chegar à imagem final, um retábulo de sete figuras, donde se acende uma vela e se pratica o ritual, cada vez mais necessário, cada vez mais vivo, a nossa capacidade de sentir o outro, a religião à sua volta, e nesse lugar repleto de tensões sociais e políticas donde vivemos.

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista com o diretor, em Rotterdam
RATING: 74/100

TRAILER

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REVIEW · ROTTERDAM

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