Desde os primeiros folhetins de Carlo Collodi, houve inúmeras versões de Pinocchio, quase 140 anos contados pelo desejo popular, filmes, séries e animações. Essa luta pela redenção de um boneco que deseja se tornar um menino de verdade, mas sempre é ludibriado pelos serviçais dos prazeres, sempre foi lugar de encanto e mistério e, sim, uma história filmada “n” vezes, incluso as lentes do psiquismo de Walt Disney, o desastre histriônico de Roberto Benigni, talvez as tintas surrealistas de Guilhermo Del Toro, mas certamente nenhuma versão será tão nababesca quanto a de Matteo Garrone. E é assim porque sempre coube a esse cineasta um interesse particular pela fábula, o conto de fadas, O CONTO DOS CONTOS de inocentes, de imaculados, personagens que se perdem em busca dos próprios sonhos. E isso não é mentira.
Então, um filme cuidadosamente entalhado de esperança e autocrítica, um toco de película adornado de romantismo barroco e grotesco satírico. E diante de tantos floreios, ora recriados em uma Hollywood magnânima, ora na grande decadência do baixo ventre, o cineasta encena um teatro felliniano invocado na alegoria do avesso, na suruba colorida e fecunda de um exército de foliões e asnos, fantoches e titeriteiros, golpistas e ingênuos, e todos capitaneados por esse boneco de madeira empenhado em fundar uma sociedade feita de canto e dança. E ali, nesse frenesi de miséria medieval, o público fica boquiaberto pelo descaramento, os contos do vigário (ou do Gatto e raposa?), dessa alegria feita com os despojos dos pobres, do ingresso ao circo, das marionetes ao fogo, o carnaval feito nas carroças, em girândolas, em torres douradas ou no tribunal dos gorilas, mesmo na goela da baleia.
Desse prazer sádico, dos encantos de um cinema afrodisíaco, quase profano, que foi à raiz da fonte original – os manuscritos originais de Collodi -, para ali recriar os formões de um Gepeto envelhecido e triste, cozer os mingaus de uma Fada Azul tão doce e matriarcal, vemos um PINÓQUIO renascido (no estabulo), a criança de verdade, com pele e cabelo, humanidade autêntica, alma de garoto, indo e voltando do purgatório, tão explorado, tão sofrido, enforcado, enterrado, em plumas, em traças, nos chafarizes, no palco, a história que revela o mistério da vida e da matéria feita em gargalhadas e caricatura e – principalmente – na cara de pau dos sujos, dos solitários, os desgraçados, escrotos, vagabundos e bêbados. Ali está o escracho, o fascínio. O espetáculo mais lembrado da história dessa história que o cinema não esquece.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela HanWay Films, incluso a entrevista com o diretor
RATING: 76/100
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