O Diabo de cada Dia

Diante da cruz, se vê o calvário – e isso lhe matará aos poucos: Na tela, tão somente os pecadores, personagens desagradáveis rastejando na lama, O DIABO DE CADA DIA em assassinatos, estupro, sacrifício, prostituição e suicídio e todas essas pessoas no purgatório, desejando escapar de qualquer maneira de suas vidas estreitas, tentando de alguma forma deixar sua marca no mundo; e elas certamente o farão, mesmo de um jeito torto, para algum dia morrer na tentativa de atrair esse Deus, o senhor que lhes ignora, imune às preces, às barbáries, aos espancamentos diários disso que se chama de vida. Então, da existência cruel, surge um raro momento de beleza, um suspiro, um céu, alguém, e é por esse fiapo (de esperança? fé? humanidade?) que nos agarramos à película, a cada dia. E todos os dias.

Um cinema donde os crimes são cometidos com uma casualidade de tirar o fôlego, assim de repente, do nada, um tiro e o diabo dedilhando no desespero desses vilarejos, a frustração das limitações, os pequenos prazeres que evoluem para versões doentias, uma foto num piquenique, uma garota no Cadillac, os sonhos pateticamente pequenos. Antônio Campos, especialista em dissecar o psicológico sórdido de personagens, outrora com CHRISTINE, com SIMON ASSASSINO, mesmo na produção de trabalhos alheios (JAMES WHITE, MARTHA MARCY MAY MARLENE), amplia os horizontes e filma toda a insignificância de uma cidade do interior, e o faz entre Ohio e Virginia, com um punhado de almas perdidas, filmadas através do tempo, meses, anos, eles surgindo em cena e sumindo esquecidos como se tudo o que importasse para tal narrativa fosse infelicidade e expurgo.

A imagem de Cristo está em toda parte, assim como a carnificina do Diabo, o filme oscilando entre eles, em algum lugar, um narrador-deus nos contando a história, esse duo de beleza e brutalidade, outrora um livro de Donald Ray Pollock, agora um filme de elenco estelar, o sangue inabalável em um livro de orações. O cineasta sempre nos conduzindo à cruz, a fotografia operando entre luz e trevas, o grão da maldade o tempo todo, como se cada frame fosse um retrato do diabo.

E tudo caminhando em “coincidências”, porque já dizia Nelson Rodrigues: “a coincidência tem o dedo de Deus ou do diabo”. E elas surgem ao acaso, o pastor viajante que afirma que só a fé lhe ajudou a superar seu medo real de aranhas; o marido e a mulher que passam “férias” vasculhando a estrada em busca de “modelos”; o pai crente em busca de sacrifício para salvar a esposa; a órfã penitente sob as graças de um falso profeta… Campos vai filmando e destilando cada história, seu filme é muito tenso, duro, uma doentia sensação de decadência através de um show de horrores itinerante, donde cada ator brilha distorcido e nos deixa perplexos. Todos querem escapar do diabo. Seguir em frente. Fugir. Mas parece que a única fuga possível é a morte. A morte como um ato divino. E a nós – o público – só nos resta contar os mortos.

RATING: 75/100

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FILMES

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