Fernando, um ornitólogo solitário, está à procura de cegonhas negras ao longo de um remoto rio nos confins de Portugal quando é arrastado pelas corredeiras. Resgatado por um casal de peregrinas chinesas a caminho de Santiago de Compostela, ele mergulha em uma floresta escura, misteriosa, tentando voltar às origens (e às cegonhas). Mas diante de obstáculos inesperados e estranhos, pessoas que o colocam à prova, o protagonista logo é levado por ações extremas, transformadoras. Aos poucos, ele se torna um homem diferente: inspirado, multifacetado e finalmente esclarecido.
Desse cinema, a inspiração vem de Santo Antônio, talvez o santo mais famoso do mundo e, especificamente em Portugal, uma figura onipresente na cultura e sociedade. Provavelmente porque nasceu em Lisboa, entre 1191 e 1195, e ali foi batizado de Fernando. Também porque, como acontece com tantas outras fabulas portuguesas, sua vida foi de viagens por terra e mar. E foi numa dessas jornadas, à deriva depois de uma tempestade, que ele acabou por naufragar na Itália, na cidade de Pádua, donde foi resgatado por franciscanos e morreu em 1231. Na verdade, Pádua seria acrescentado ao seu nome na posteridade. E de tantos feitos, ou milagres, os portugueses o invocam, o celebram, o reconhecem, seja na Igreja como nas artes. Também o diretor, João Pedro Rodrigues. E certamente o protagonista.
Não é, todavia, um filme de sentido religioso. Para os portugueses, Santo Antônio é alguém imaginário com o qual coexistem ou negociam, demonstram simpatia ou aversão, ou simplesmente curiosidade. E em busca desse mito, a projeção parte de um experimento, uma jornada sem investigação formal, algumas peças de um puzzle sem grande preocupação ou precisão, donde o cineasta esconde sua história em película, no fato que o santo compreendia várias línguas, trouxe um jovem de volta à vida com uma única respiração mágica; que carregou o Santo Menino nos braços. De sua fascinação com a natureza e os animais; que outrora ele desistiu de sua origem aristocrata para não ter nada além do estritamente essencial, senão o conhecimento e erudição e, claro, essa lenda do barco à deriva. Na verdade, dessa última imagem, este navio perdido que decidiu o destino de seu passageiro, desse ponto parte o filme e seu ornitólogo.
Dali, pelo surreal, pelo gótico, nesse trem-fantasma fantástico, a imaginação toma conta, os franciscanos se tornam chinesas, o abraço com o menino Jesus se transforma num gesto amoroso. A ressurreição virá por um jovem pastor. Como na lenda, o santo fala em pescar, mas a licença mais eloquentemente poética está nessa relação especial com os pássaros com o qual se observa, pelo binoculo, pela câmera. E assim, a história do santo, do ornitólogo e do diretor se (con)fundem num filme. Todos em transição, em mudança de identidade, (re)pensando a vida e o que ela representa.
Sim, nessa parábola, pela floresta, se invade diferentes criaturas e temas, episódios de uma jornada, um fluxo de encantamento ou deslumbramento que borra as noções do tempo e realismo. Como num antigo conto de fadas, a floresta, uma expressão do inconsciente coletivo, é um imaginário de catolicismo, superstição e tradição. É a essência da religião e do paganismo. A própria essência de Santo Antônio e a alma do diretor. É o espírito, a trajetória que dá vida ao filme e leva esse ornitólogo para a sua nova identidade. Afinal, para MORRER COMO UM HOMEM.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Films Boutique, incluindo a entrevista com o diretor e notas de produção
RATING: 69/100
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