É impossível falar sobre o cinema paraguaio sem estar ciente dos anos de escuridão, muitas décadas sem possibilidade de fazer cinema durante os anos 60 e 70, enquanto o resto da América Latina narrava suas próprias histórias. O Paraguai, no entanto, permanecia invisível. Seu cinema quase inexiste. Um filme como AS HERDEIRAS, portanto, é muito raro. Além da história de Chela e Chiquita, é também a tentativa de criar um diálogo com o passado, aquele momento de obscuridade donde a sociedade não queria mudar ou preferia se esconder, agarrada à sua própria sombra. Dessa herança, persiste um tênue romance entre a pequena burguesia e os regimes autoritários, não só os personagens que moldaram seu tempo com botas e rifles até o final dos anos 80, mas inclusive os novos líderes “democráticos”, que agora compartilham os benefícios da corrupção e do narcotráfico, sob a cumplicidade e os silêncios de seu povo.
E é por esse cotidiano, tacitamente velado, que Marcelo Martinessi escreve sua história. Seu filme é uma gigantesca prisão, um cinema de confinamentos, imerso num regime que protege e reprime. Suas protagonistas pertencem a essa elite protegida/privilegiada, mas a história se desenrola adiante, quando elas começam a perder suas garantias. Essas mulheres ainda possuem seus carros, seus criados, seus pequenos luxos, um certo conforto, mas precisam se adaptar à nova realidade, uma nova paisagem, quase desconhecida, mas cheia de possibilidades.
E de bandeja, o cineasta nos coloca ao centro dessa burguesia decadente, diante de um casal que, aos poucos, perde as pretensões em busca da humanidade, mulheres fortes e resilientes, várias atrizes desconhecidas – Ana Brun, Margarita Irun, Ana Ivanova, entre outras –, mulheres idosas, um grupo tão raro quanto esse filme, produto de um tempo que, pensamos, acabou. Não se trata de caricatura, mas um retrato sincero, feito com intimidade e curiosidade, um universo feminino, donde os homens são completamente ausentes. Uma geração que cresceu (e viveu) moldada pelos militares e pela Igreja Católica, sem ao certo um espaço seu, mas ali presente, nesse filme cheio de memórias, um tanto pequeno, feito em escala humana, bem hermético no sentido literal e simbólico da palavra, mas que termina em aberto, uma porta aberta para um novo começo, uma bela e inesperada descoberta. Então, um novo cinema, um novo país, há esperança.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela LuxBox Films, incluso notas de produção e entrevista com o diretor
RATING: 74/100
TRAILER