Nas últimas três décadas, Alfonso Cuarón levou seu público à muitos lugares distantes, uma escola vitoriana de meninas, um infértil futuro distópico, o encantado mundo de Harry Potter, até mesmo o vasto vazio do espaço sideral, mas nada – e eu digo nada – foi tão extraordinário quanto o quintal de sua casa… e ali, de volta ao lar, (re)imaginando O ANO EM QUE MEUS PAIS SAÍRAM DE FÉRIAS, isso na Cidade do México, nos anos 70 e dentro de uma família que luta diariamente para se manter unida, o cineasta filma o mais simples e pessoal possível e, ao fazê-lo, cria um épico descomunal, um filme etnográfico, uma colcha de retalhos, cujo fino tecido nos parece tão rarefeito, mas na verdade se estende no varal de nossa memória, ali mesmo nesse quintal donde tudo acontece e se vive e se encanta, uma espécie de versão bertolucciana de 1900 mexicano.
Sim, a história de uma família que aos poucos se torna a contemplativa história de uma nação. Incluso aí, todo o melodrama popular da Avenida Insurgentes, o bairro de classe média da Roma, ou mesmo a favela de Netzahualcóyotl, os diferentes vendedores ambulantes chamando atenção para si mesmos, gritando ou assobiando com flautas ou sinos. Cada carro no trânsito, o movimento dos pedestres, os sons se movendo de um lugar para outro enquanto a câmera lhe acompanha de perto. Depois, o horror… as manifestações estudantis, a luta pela democracia, o infame episódio do Massacre de Corpus Christi. Há muito o que se pensar aqui, muito o que se ver, inclusive como tudo parece tão compacto e consistente, orgânico e instintivo.
Mas voltemos ao quintal de casa, aos primórdios de um cinema em preto e branco, ao dialeto Chilango e essa experiência quintessencialmente mexicana: O casting de não atores foi cuidadoso. Aos moldes de JOGO DE CENA, de Eduardo Coutinho, Cuarón entrevistou cada pessoa, em busca de sua história mais particular, a visão mais ínfima e intima de sua existência e, dali, encontrou seus atores e tantas outras histórias, seu filme de lembranças e, claro, Yalitza Aparicio, a jovem sem qualquer experiência de atuação e, todavia, uma atriz por excelência porque interpreta ela própria, Yalitza. E eis a catarse, porque cada pessoa interpretou sua própria história, sem roteiro, ensaios ou conhecimento do que acontece com o outro. Isso filmado em ordem cronológica – o que é muito incomum – e com uma equipe exclusivamente mexicana, para se manter o mais fidedigno possível ao período. Feito na própria casa do cineasta, com a mesma mobília da infância, ou ao menos as réplicas, os quartos cheios de coisinhas, a cadeira velha da avó, o retrato da mãe, o sofá do pai, não apenas para recriar o tempo, mas também a personalidade de seu autor. E é isso… ROMA é um filme de (e para) Alfonso Cuarón.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Netflix, incluso notas de produção e entrevista com o diretor
RATING: 100/100
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