O Filho de Saul


O FILHO DE SAUL é um filme realizado no osso, no pó, nos ínfimos. Um filme-concentração filmado no coração de um campo de concreto, nenhuma humanidade ali, exceto a fornalha disforme de miséria, fome e vergonha, meros retalhos de algo, outrora pessoas ou estrelas apagadas em marcha no holocausto. E desse principio, no começo um borrão, depois um rosto, de repente Saul, vemos alguém vindo do nada, e do nada caminhando, e para o nada vamos segui-lo. A câmera ao seu redor numa profusão de sons, vozes, choros, passos, sussurros, tratores, bombas. Um plano-sequência de gente andando, correndo, perdida, enquanto Saul completa a tela e, ao fundo, se promete banho e sopa quente. A porta se fecha, nos encarcera no silêncio. Nos dá calafrios… Isso é a claustrofobia que László Nemes emula: A história de um homem sem qualquer humanidade, exceto seu filho. De um homem sem qualquer esperança, exceto o instinto.

Então, são dois dias na vida de Saul, sua sobrevivência e um corpo morto. Nada além dessa missão, dessa percepção e seus arredores, o horror e suas regras, o silêncio e suas reticências. Uma jornada pelo inferno, a terra profanada, o extermínio “sonderkommando”, isso dito em muitas línguas, gritos, ordens, em húngaro, ídiche, alemão ou polonês, não importa porque tais palavras, vociferadas, dizem a mesma coisa, esse ódio pleno sem qualquer razão, moral ou Deus. E pelo buraco negro, a fúria, o Führer, vivenciando o mais desumano que se possa imaginar, ali, sob as cinzas, nessa máquina de cadáveres, os fornos em pleno vapor, o céu chumbo soprando morte, vemos esse homem e seu ato, tão fútil e inútil, mas guiado por essa obsessão, uma pequena voz que aos poucos morre em seu interior, enquanto outras, aos milhares, são despidas, asfixiadas, exterminadas.

E na tela, vemos não só a face do horror, isso se intui claramente às portas da câmara de gás, o extermínio, os gritos, os corpos, mas senão – e somente – a própria face de Saul, seu (indiferente) ponto de vista, a câmera ao seu lado, vendo, ouvindo, testemunhando e todo o resto desfocado ou fora de campo. Nada bonito. Nada atraente. Apenas sincero e, desse modo, em 35mm, observamos o alvo vermelho numa estranha janela, esse homem a fugir, sempre a buscar, seu olhar em submissão, solidariedade ou resistência, circulando pelo acampamento, à caminho da morte, com a morte nos braços, aos pedaços, aos fragmentos, sempre ordinário e notável, profundo e impassível, perspicaz e lento. E com ele, nos esgueiramos pela cerimônia desse fim, a fábrica infernal, seus ritos e maquinas, orações e ruídos, e quando não houver mais esperança, no ultimo círculo previsto por Dante, eis aquela voz interior, que surge desde os tempos imemoriais pelo ser humano, milenar e sagrado. O luto onipresente que nos guia pela (e através) da morte. A visão de um menino, um filho, talvez um anjo que nos observa e corre pela floresta. Não há mais nada a se fazer. Que descansem em paz, descansem “In Memorian”.

RATING: 89/100

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FILMES · CANNES · TIFF · MOSTRA SP

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