Where Is Anne Frank

Depois de quase 75 anos da publicação do livro, outros 65 da primeira adaptação ao teatro e cinema, o cineasta Ari Folman veio ao “Diário de Anne Frank” para fazer, não um filme literal, outra versão qualquer, mas um verdadeiro projeto de legado. É curioso, um trabalho que pretende não só as telas, mas todo um aparato pedagógico que se estende às escolas, aos professores, às aulas de história e Holocausto, essa luta contra a discriminação e o antissemitismo. Não à toa o caráter professoral, quase infantil dessa pequena obra pensada especificamente como animação, feita laboriosamente em técnicas artesanais, oito anos de produção, mais de 14 países envolvidos para recriar um (outro) documento histórico, os mesmos sonhos, as emoções, a esperança que Anne escrevia antigamente, um texto atemporal portanto, mas cuja forma de contar essa história e a relação dela com a história – com um H maiúsculo – evoluíram. É cinema feito aos pequenos, em sua própria linguagem, sem trair a obra e os personagens que evoca para, sim, abrir portas, o debate, o pensamento. Daí o título, WHERE IS ANNE FRANK, a sentença que nos remete à um questionamento, mas na verdade é uma afirmação para discutir, mesmo que artisticamente com suas licenças poéticas, elipses e dispositivos narrativos, tão somente os fatos e, num duplo sentido, o espelhamento desse testemunho histórico no mundo contemporâneo e suas repercussões.

O roteiro é o mesmo dos quadrinhos de 2017, baseado no próprio material original, as cartas de Anne Frank para sua amiga imaginária, Kitty, isso em uma progressão cronológica, começo, meio e fim. Se outrora no cartum, o desenho anima as letras, ligando o texto à imagem e sugerindo uma leitura nas entrelinhas, o filme faz o mesmo com sua protagonista: parte de uma noite tempestuosa no museu da Casa de Anne Frank, para retornar Kitty do limbo, ela recomposta a partir dos fios de tinta que misteriosamente flutuam das páginas do diário manuscrito, ali guardado. Nisso a narrativa se divide em duas personagens vivendo o passado e o presente, a história de Anne e de Kitty e os eventuais paralelos entre elas. Nossos olhos e ouvidos sempre em Kitty, ela explorando o mundo de hoje com seus turistas, policiais, punks e refugiados. E de posse do diário, também o lendo, nos permitindo o flashback de Anne.

Importante frisar que o passado, a dramaturgia em si, é literalmente baseada no texto do diário, ou inspirada por ele. Trata-se de uma descrição minuciosa (até bem didática) dos relatos que Anne escreveu e, embora ela não mencione o Holocausto, Folman e sua equipe documentam também a trajetória da família, isso claro sem os devidos horrores e violência explícita. Já o presente, esse é mais livre, aborda outras crianças em zonas de guerra, por exemplo, para nos ampliar na lição. Inclusive, dentro desse (mega)projeto do diretor no Anne Frank Fonds, museu que lhe patrocina, existe outro quadrinho, chamado “O Livro de Kitty”, que narra os últimos sete meses dos Frank, não mencionados no diário original, mas reconstituídos em uma abominável jornada nos campos de Auschwitz e Bergen-Belsen, essa história fielmente documentada de outras fontes.

Em tempos de negacionismo, torna-se um filme necessário para jovens espectadores. Talvez não seja o melhor do cineasta que já carrega VALSA COM BASHIR e O CONGRESSO FUTURISTA na filmografia, mas enquanto peça artística, uma obra de ativismo social, é algo emblemático no cinema. Tecnicamente é sublime, a forma de representar os campos de extermínio em representações da mitologia grega, os nazistas como os “dementadores” de Hades, e o enfrentar de tropas com um inusitado exército de unicórnios com Clark Gable e tudo, é um bonito lembrete de como por trás desse diário, havia uma menina que sonhava com a vida, assim como seu público-alvo sonha ser alguém. Vale pelo aprendizado: a historia não pode ser esquecida, para não se repetir.

RATING: 70/100

TRAILER

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ANIMAMUNDI · REVIEW · CANNES · TIFF

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