Europa

Um filme sobre migrantes, outra história insustentável. Por onde começar? Parece, estamos na fronteira, em algum vestíbulo de noite, cães, helicópteros, sirenes e tiros. É a “EUROPA”, o título diz. Haider Rashid, no entanto, filma o inferno: uma ideia muito sensorial de cinema, “Divina Comédia” na floresta, câmera no protagonista para seguir pelo limbo e, com ele, o público também nessa fuga. Todo o filme na caverna do dragão, no vale demoníaco de longos planos-sequência para simular o tempo real, a sobrevivência (como?), a esperança (não tem!), somente esse rapaz – nunca sabemos seu nome, suas origens, a motivação. Em torno dele, tudo, homens e coisas, é borrado, indistinto, e isso permite ao cineasta escapar pelo menos em parte do dilema (ou não) de representar o horror.

Claro, a forte escolha estilística de seguir somente o rosto e o corpo do forasteiro, colocar o filme em seu ponto de vista, sua percepção entorno da selva abominável, isso já é suficiente para nos mergulhar no suspense, participar de tais eventos, como nunca em um filme (talvez O FILHO DE SAUL). A sensação é caminhar sobre um terreno vago, sem ideia de onde ir e sempre à espreita das ameaças, de ser caçado, algum doido surgir e lhe atirar. As pedras rolam soltas sobre tal cinema, afastando qualquer glamourização pirotécnica. O enquadramento é tão somente um ator, a câmera e o vale do rio Flegetonte e ao redor, talvez morte, frenesi, sobretudo a natureza ofuscante, uma câmera móvel e pênsil na altura do coração, do rosto, a perambular em volta do personagem como uma mosca-varejeira.

Tão logo, o rapaz se torna nosso guia pelas margens da sociedade, vemos o campo, o tênis arrebentado de tanto andar, uma aparente serenidade, ouvimos os pássaros, o farfalhar das árvores, o rio correndo e, então, um cadáver, talvez um amigo, um vizinho, um parente, não se sabe, está ali como tantos outros na floresta; lá longe se ouve tiros, gente caçando, grupos civis nacionalistas parecem, e a projeção adentra nessa linha de extermínio planejada. O personagem foge, percebemos o pânico através de seus olhos, a respiração ofegante. Não há tomadas subjetivas, tudo é visto e filtrado desse ponto de vista. Como resultado, o público vai pelo thriller, se contamina com seu sangue, a lama, a dor excruciante. O filme sobretudo nesse destino, jamais abandonando o rapaz ou indo além do seu campo de visão. Também não lhe dá paz, nenhum momento de sossego.

Uma narrativa poderosa, o argumento nasceu dos medos de um discurso de ódio, cujo teor xenofóbico lentamente se infiltra em inúmeras políticas europeias. Há componentes autobiográficos nisto e, sem dúvida, fragmentos baseados em eventos reais na chamada “Rota dos Balcãs”. A situação dos migrantes que entram na Europa tem sido uma peça central no noticiário internacional, mas nada se compara ao que se vê aqui: uma “ficção” em que um personagem está quase sempre sozinho, lutando contra seu entorno, seus atacantes e, finalmente, ele mesmo. O resultado é uma experiência dura e desumana, visto da maneira mais realista e visceral possível; somente respirar, viver e lutar com um personagem resiliente, mas ainda assim, sofrendo com sua pequena e quase minúscula história (e que representa a luta de muitos). Nisso, enquanto o filme avança fortemente no realismo, nessa abordagem íntima do personagem e um constante senso de presença, o público adentra pela natureza profundamente simbólica: a ideia de ser um imigrante ou descendente de imigrantes na Europa hoje, muitas vezes é sentir-se perdido na floresta selvagem, onde os amigos são poucos e os inimigos são muitos.

RATING: 77/100

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REVIEW · CANNES

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