Freda

Dueto de drama e documentário, esse retrato urgente de FREDA, uma convulsão social, favela-movie, momentos de calmaria e revolução, gente pobre, língua crioula e negritude. Um filme muito livre, de câmera na mão e não atores, para narrar o cotidiano de uma jovem e nada mais. Um passeio por festas, cultos e bailes noturnos. O batuque do gueto, portanto: mãos ao alto, dança e muita kompa, mas não se engane, nem tudo é festa. Gessica Généus ecoa um grito de guerra, um filme que abre em pesadelos e caminha por sonhos febris e donde tudo é panfleto – feminista e político -, um ponto de vista negligenciado na esfera patriarcal, diria muito raro, isso em um cinema incomum e pouco explorado, tão logo o Haiti.

A história (que historia?) é nada: esquetes do dia a dia em Porto Príncipe e debates acalorados sobre colonialismo, transmissão de cultura e legado, mas que de certa forma captam o estado de espírito de toda uma sociedade haitiana, isso inserido em uma narrativa familiar, afora a insurgência de um povo que vai às ruas. Não é pouco. Há um impulso nisto, uma energia a respeito. Algo jovem, uma estética muito crua, mas de certa beleza. Um filme essencialmente de mulheres, donde os homens não existem, foram protestar, fazer sua revolução, desaparecer ou fugir, enquanto as mulheres ficam. Na tela, são Jeannette, Freda, Esther ou tantas outras, meninas, irmãs, mães, mulheres que apenas sobrevivem ao sistema, algumas abrem suas pernas antes de seus corações, outras se vendem ao sonho de um amor insone. Elas sabem, “a fome extingue o amor”, “o amor não enche barriga”… então, escolhem seu caminho (ou são obrigadas), quase em uma celebração sutil de resiliência.

Nisto, o roteiro tenta o exorcismo. Não à toa, abre na Festa dos Mortos: há um valor simbólico aqui, como se a história desejasse se livrar dos esqueletos, desabafar tudo em uma autópsia do corpo, da alma, dos pesadelos, bem como dos traumas. Outrora documentarista, a cineasta varre tudo com seu olhar, a câmera a observar as coisas como elas são, detalhes que não são como gostaríamos que fossem. Não há escolhas, no entanto. O mesmo ocorre com esse país. Deixar (ou não) o Haiti é uma pergunta que muitos personagens fazem e, afinal, por que ficar? Muitos se foram; muitos gostariam, mas não podem; a maioria é forçada a ficar e lutar, para enfrentar aqueles que os impedem de existir. E isso cria uma frustração terrível. Faz parte do cotidiano de manifestações, pneus queimados, tiroteios e presidentes chacinados. Ali se vive um dia por vez, se lamenta um dia por vez, tal cinema abraçando essa realidade para nos ensinar os porquês de tanta mágoa, desse insistente procurar de um refúgio, quando só se tem um fardo para carregar. Sim, o futuro é incerto, mas o filme persiste, fica na memória com seus dilemas e repercute (muito) extracampo. Um cinema necessário, raríssimo. Não é pouco, senão um grito, um grito profundo.

RATING: 68/100

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REVIEW · CANNES

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