Cruella

Na vitrine, deveria ser um prelúdio de 101 DÁLMATAS ou mesmo um reboot dos live actions homônimos de 1996 e 2000 com Glenn Close, contudo apesar de toda a (complexa, esquizofrênica e fracassada) história de origem para compor uma personagem vilanesca, todas as tentativas e rimas visuais para encaixá-la em algum contexto de retalhos, talvez o grande mérito de CRUELLA seja flertar com o corte e costura de O DIABO VESTE PRADA e fazê-lo essencialmente um filme de moda. A assinatura é do cineasta-alfaiate Craig Gillespie, o mesmo da coleção de obsessões filmadas em A GAROTA IDEAL e EU, TONYA e aqui não poderia ser diferente: seu duo de protagonistas reflete – como outrora Meryl Streep e Anne Hathaway no filme de 2006 -, um desejo obsessivo pela estética absoluta, a perfeição formal a qualquer custo, seja o corpo, a integridade psíquica, a própria vida. É a mesma experiência de busca pelo sublime e o belo, a excelência “haute couture” que vai muito além do rito narcísico da vaidade. O confronto entre Baronesa e Cruella, Emma Thompson e Emma Stone, é uma deliciosa carnificina de egos e poderes, lembra ao longe a compulsão de Joaquin Phoenix (CORINGA), a frieza de Daniel Day-Lewis (TRAMA FANTASMA), o que torna esse filme em um incrível desfile prêt-à-porter de psicoses, nisso surpreende. E muito.

Sim, o filme continua a ser um produto muito Disney e mediano, mesmo aqui e ali com bastante tule (e cachorros) para dar volume, mas a experiência de ver a Baronesa na tela, essa Emma Thompson vestida como um oráculo fashionista, sua imperiosidade démodée obstinada pela excelência, mesmo a crueldade e insensibilidade às dores e sofrimentos dos empregados-vassalos, que tortura, despede, troca como se fosse visual antigo, isso é uma peça icônica graças à interpretação furiosa da atriz. E no contraponto, “London is burning” com Emma Stone: ela igualmente feroz, vestida de escandaloso punk “Lady Gaga” e contornos anárquicos, muitas cores fortes e eleganza extravaganza e nossa… façam uma pausa para se deleitar! Se o filme ficasse nesse corpete bem estreito, o ti-ti-ti vilanesco entre as duas personagens, o figurino rebelde de Jenny Beavan (a mesma de MAD MAX: ESTRADA DA FÚRIA), a trilha hardcore punk da contracultura de Londres dos anos 70, sem falar das homenagens easter eggs, a estilista Vivienne Westwood na pele do andrógino Artie, ou Yves Saint Laurent como assistente de ateliê, isso já seria triunfal, ou nas palavras do Tattletale para algumas cenas: “uma releitura de corte alto, enviesado, que modela o cinema de maneira tão ousada que levou o público a intervir, aplaudindo assim que viu.”

Pena que o resto seja tão superficial, desestruturado, sem graça… há muito excesso na história, muita coisa para editar. São pouco mais de duas horas de projeção, dos quais os primeiros trinta minutos são bem discutíveis, diria desnecessários: ele narra toda a infância de Estella (ou Cruella) em voice off, tentando costurá-la com os signos da animação original, aquela de 1961 sobre o fatídico casaco de pele de dálmata, então você vê muito cachorro, o calhambeque Devil, as origens da Mansão Hell, um Jasper e Horace bonzinhos… tudo meio solto, mal alinhavado, como se a referência por si só bastasse (lembra o desastre que foi HAN SOLO: UMA HISTÓRIA STAR WARS). Somente quando a Baronesa aparece é que o filme desfila poderoso, mítico, embora ainda amarrado nesse imbróglio de explicar, fazer sentido. E é nessa armadilha que CRUELLA se veste de bipolaridade, momentos de Gucci e lojinha do Brás, tal qual o cabelo preto e branco da protagonista: poderia ser um grande filme “de” moda, mas certamente será apenas o filme “da” moda, outra adição do catálogo Disney Plus.

RATING: 74/100

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FILMES

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