Tenho Medo Toureiro

“Yo no tengo amigos, cariño, tengo amores.”


Sim, é uma história de amor… tantos desejos e melancolias, tanta paixão e revolução, tudo é tão somente duas almas evanescentes na ditadura de Pinochet: um travesti solitário, um jovem guerrilheiro, o destino os unindo de alguma forma, a vida os juntando e separando como se fosse a letra de um bolero e essa tristeza infinita, infinitamente. Quão frágeis os dois. Que musica linda no rádio. A sensação é estar sonhando enquanto o tempo passa. “Qué dulce este dolor de haber amado y no poder tener tu risa, tus caricias y tu voz”. E nessa ode à música latina, senão ao cinema queer, sonhando talvez, ou embriagados no chá-chá-chá de Alfredo Castro e Leonardo Ortizgris, ou mesmo o espírito de Pedro Lemebel em algum lugar, ouvimos o doce cortejar das violas e maracas, o sussurro no ouvido, “tengo miedo torero”, e toda essa libido em um arrepio, desejos de carne e de beijo e o filme, um nó no peito. “Qué frágiles los dos y qué hermosa canción”.

Lá fora, o Chile vive a turbulência dos anos 80, mas o que Rodrigo Sepúlveda filma é algo muito mais íntimo, poucas palavras e revolta, certa encenação e poesia. Seu olhar deseja somente os dois homens embalados de mistério e descoberta. Em princípio, sugere um relacionamento por interesse, de alguém em busca de esconderijo, de outro em busca de refúgio, e as reuniões aos poucos se enfeitando de glamour. Tal cinema nesse enrosco e aconchego, muitas tardes de bordado e noite de adultos. A historia completamente alheia à realidade, talvez propositadamente, como se os personagens escolhessem de fato não falar sobre isso, ao menos em cena para viver seu romance. Já o livro ao qual o filme homônimo se baseia, esse tece mais observações políticas, diria todo um ambiente revolucionário. Tudo, entretanto, desaparece no filme. Se torna essencialmente uma história de amor, ilusão portanto.

E de ilusão vivemos, só para admirar nosso toureiro: ao redor, uma cidade em ruína depois do terremoto, dos militares, dos toques de recolher e dos cânticos de protesto e notícias de rádio. Mas o diretor sintoniza apenas bolero, a dança que evoca de antemão o gesto sexual, o texto que substitui o corpo real, o gozo de saborear o sal, o limão, a tequila na pele. Sepúlveda constantemente nos ilude nesses prazeres voyeurs, o olhar voraz que olha o não-dito, sussurrado, murmurado. Sim, é uma história de amor, embora o romance esteja em plena marginalidade e repressão, como se fosse um ato proibido. E nesse ponto, o pessoal alcança o social: ainda são dois amantes, mas tão sufocados como todo o resto do povo chileno.

Então – você finalmente percebe -, essa história é de medo: a mesma história que Pedro Lemebel viveu na ditadura, a mesma canção que Lola Flores imortalizou nos anos 90. O próprio título já dizia: TENHO MEDO TOUREIRO, “tengo miedo cuando se abre tu capote, de que el borde de la tarde, el temido grito flote”. Aí você ouve o sussurro do poeta, do louco, do homossexual, do rebelde, do velho… são afinal muitas vozes – e nomes, medos, obsessões. Alfredo Castro encarna todas as personas e as borda em película, seu manto de escarlate e ouro para enganar o touro e nós, o público, diante dele, sem ação, sem voz. Que frágil nos somos. Quão frágeis os dois. Que filme lindo seria no cinema.

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista com o diretor, em Veneza. Contém trechos das canções “Si No Hablamos” (Pedro Aznar & Manuel García) e “Tengo Miedo Torero” (Lola Flores)
RATING: 79/100

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FILMES · VENEZA · FILMES LGBT

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