O filme abre no engasgo. Em náusea. Asfixia. Antes sugere algo belo, uma profecia bordada em linho branco de alegre música, querubins e doce harpa, mas logo se escancara no inverno, no inferno e nos sufoca na densa noite. Há telefonemas, há e-mails, ninguém responde… então, Ari Aster constrói seu terror, enquanto os violinos choram como unhas em um quadro-negro, os tambores batem em eufórica agonia e Florence Pugh grita em seu desgosto órfão.
MIDSOMMAR se faz no dia, mas logo nos devora na escuridão. Há Sol lá fora, mas ninguém deseja ir. Todos têm sono e fastio dos rituais humanos, nenhum interesse no outro, qualquer que seja. Há serpentes e odaliscas ondulando sob o Sol. Há guizos diante de cada um, mas ninguém os sabe distinguir. Incapazes de ver, de ouvir, admiram seu próprio umbigo enquanto dançam, dançam e dançam em longo transe, a música do inferno, o som do esquecimento, o rodopio torpe aos acordes dos cascos, do sangue nas veias, das bolhas nos pés. E ao público, envolto de tais personagens, só resta dançar em círculos, em pares e depois desmaiar de exaustão. A carne tornando grama. Os ossos virando poeira. As flores sorvendo cada alma, enquanto a loucura cresce, o luto desaparece e o urso os observa impotente.
Para tal argumento, o cineasta busca diversas inspirações, lendas do folclore pagão, antigas canções de ninar, contos de violinistas demoníacos, totem-urso e rainhas de maio, mas sobretudo – e sob as mesmas bases do terror de HEREDITÁRIO – toma direções novas e imprevisíveis para construir uma apocalíptica aventura em grande escala, um ritual hipnotizante e único do chão repleto de flores, linguagem, mitologia e tradições. E o faz numa vila sueca isolada, num conto de fadas sombrio e alucinatório, tão instigante quanto visceralmente inquietante.
E certamente aos olhos dessa protagonista que viaja da carência emocional para o (in)questionável empoderamento e sobre o qual, em cada frame, exala gravitas inesquecíveis, segurando a tela durante todo o curso do filme e fornecendo grandes quantidades de choque, pânico, desespero, confusão, confiança e graça. Uma personagem que vai do pesaroso e paranoico ao enobrecido e capacitado, ou senão a própria Rainha da Primavera, a todos saudar e encantar e sacrificar.
Portanto, um filme antropólogo incrustado num estranho mundo hermético e cuja doutrinação parte do masculino e vai ao feminino, do cristão ao pagão, e isso envolto numa ensolarada dinâmica tóxica, como se todo o ar estivesse envenenado por cogumelos psicodélicos; a jornada de recém-chegados na floresta, eventualmente vagando através de um portal para o que parece ser um mundo de fantasia cintilante, mas não o é porque a aldeia de Hårga, com seus edifícios rústicos, o vasto campo aninhado sob uma cordilheira idílica e arborizada, de fato é real com suas refeições, cerimônias e folias. Então, o filme se encerra no engasgo, na náusea, ou mesmo na asfixia do coito e a fogueira. O ritual se conclui e o ciclo se fecha (e se purifica).
Em MIDSOMMAR, o verdadeiro vilão não são os próprios aldeões, que estão somente realizando os mesmos rituais que fazem há séculos, mas suas ideias, valores e costumes, que encontram uma nova casa dentro da protagonista quando a história chega ao seu clímax incendiário. Que tal mulher se vê empoderada e transformada por essas tradições obsoletas é o que empresta ao filme o seu caráter de horror genuíno. É como se fossemos incapazes de perceber as ideias venenosas que circulam pelo mundo até que estejam plantadas dentro de nós. E, sim, uma vez que elas estejam enraizadas, pode ser tarde demais.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela A24
RATING: 80/100
TRAILER