De um filme, de um tempo e de um lugar donde a saturação canina atingiu proporções epidêmicas. Donde um surto de gripe canina assola a cidade de Megasaki e aonde a febre do focinho ameaça atravessar o limiar da espécie e entrar no grupo de doenças humanas, um prefeito decide pela quarentena apressada, a expulsão e contenção de todas as raças, tanto as domésticas como os vira-latas e, por decreto oficial, a “Ilha do lixo” se torna uma colônia de exilados. Então, logo se torna a ILHA DOS CACHORROS, e também uma animação de Wes Anderson, a história de um pequeno aviãozinho que se esborracha nessa ilha e diante dos escombros e destroços, de cinco cães famintos e abandonados, de uma criança que cambaleia pela fuselagem ardente, senão Atari em busca de seu mais fiel companheiro, vemos por quase 100 minutos de projeção, as mesmas peripécias dO FANTÁSTICO SR. RAPOSO, os mesmos planos mirabolantes dO GRANDE HOTEL BUDAPESTE, a mesma conspiração de MOONRISE KINGDOM, uma aventura distópica, uma histeria antitransmódica , um stop-motion em junktopia flutuante e voilá: uma ode ao velho cinema japonês, ao legado das narrativas de Akira Kurosawa, Yasujiro Ozu e Seijun Suzuki e isso emerso na geografia dos lixos, num elenco de personagens desajustados, mas esperançosos, tanto humano quanto de pelo.
A história, com seus caninos tagarelas, femme-fatales peludas, um menino aviador, uma intrépida jornalista de escola, vírus mutantes, uma ilha mítica e um passo a passo para um grande erro humano, surge, de certa forma, ao análogo fio clássico de um estranho (o pequeno piloto) que chega nessa nova terra (a ilha do lixo) e, nesse conto atemporal de perdedores literais, vemos a eterna luta contra os opressores cegos. O detalhe (a magia?) fica no charme e textura de cada cão, na arquitetura desordenada, mas habilidosa dessa ilha, na ideia de uma criança procurando seu animal de estimação e disso desencadeando uma mudança universal na cadeia de eventos. Sobretudo, no exímio design calamitoso que torna o impossível, praticável. Em algo diferente que, por sua própria natureza, quebra as normas da animação e, reúne todos os temas, em todos os frames, infinitas complexidades emocionais e aventurescas do (talvez?) mais ambicioso filme do diretor.
A sensação é de uma lenda caprichosa, mas a base está nas preocupações reais, grandes e pequenas, da vida moderna: A amizade, a família, o futuro da humanidade… tudo empacotado em uma animação selvagem que ecoa o cenário japonês, os antigos filmes de resgate e honra, as antigas fitas de monstros dos anos 50 e 60, com seus desastres climáticos e, desse impacto, um pendulo a orbitar pelos gêneros Noir, de Samurai, de Shakespeare e melodramas, clássicos comO ANJO EMBRIAGADO, CÃO DANADO e HOMEM MAU DORME BEM em mente, cada cena carregada de forma cinética nos domínios do crime e corrupção, cada frame transcendendo o lado sombrio do mundo moderno, cada personagem oscilando entre a honestidade e humanidade, a lembrança de Toshiro Mifune, a palheta de cores da dinastia Edo, senão imagens do mundo flutuante ou momentos fugazes de prazer focados em paisagens naturais, viagens distantes, flora e fauna, atores, gueixas e kabuki. Então, por osmose, o estilo folclórico japonês se funde à sensação tátil e artesanal dessa projeção. Parece um sonho, talvez seja uma realidade alternativa, mas ao fundo, sabemos, é a ilusão de ver Wes em wabi-sabi.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Fox Searchlight Pictures, incluso notas de produção e entrevista com o diretor
RATING: 82/100
TRAILER