Marcello Mio


Ser ator é vestir a própria sombra e se iluminar. É encarnar o outro, dissolver-se no monologo de um sonho, transitar entre o real e o imaginário sem jamais fixar morada. E então, diante da tela, assiste-se Marcello Mastroianni – talvez em OITO E MEIO, talvez em A DOCE VIDA – e, na hipnose desse olhar, nasce o impulso inevitável: admirá-lo tanto, adorá-lo tanto, que a única resposta possível é imitá-lo. Seja um ator, seja uma atriz, seja o público, todos se tornam reflexos dessa miragem. Coube, então, essa tarefa à sua filha, Chiara Mastroianni. E coube a Christophe Honoré dirigir esse jogo lúdico onde a imitação não é apenas tributo, mas transformação.

MARCELLO MIO é esse teatro dentro do teatro, cinema dentro do cinema — um palco onde a ficção brinca de ser verdade e a verdade se deixa borrar pela mentira. Não se trata apenas de um tributo a Mastroianni, mas de um tributo ao ofício de atuar, ao jogo de máscaras, ao eterno faz de conta que nos enreda a todos. Um filme de atores, mas não no gesto ensaiado diante das câmeras, veja bem, e sim naquilo que acontece entre os takes, ou nos intervalos da existência, quando a representação se torna uma segunda pele. E, assim, eles se interpretam a si mesmos, mas o que há de mais real nisso? Um paradoxo lúdico, um exercício teatral que ressoa como eco entre o palco e a vida.

Lá está Chiara, em sua rotina de silêncios e gestos cotidianos, na pausa entre um ato e outro, no compasso de uma herança maior do que a própria memória. Afinal, seus pais — como todos sabem — são lendas. E um legado como esse não é apenas de sangue, é patrimônio coletivo, uma película que já não pertence a um só olhar, mas a todos os que, um dia, se deixaram encantar por Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni. No escuro das salas de cinema, essas histórias já foram nossas antes mesmo de serem dela.

Mas não se trata de biografia, e sim de invenção, de um floreio romanesco que se move por imitação, como sombras projetadas em um biombo. A ficção, sempre ela, tão sedutora e tão traiçoeira, apaga as bordas entre o que é e o que poderia ser. Chiara Mastroianni interpreta Chiara Mastroianni. Catherine Deneuve interpreta Catherine Deneuve. Melvil Poupaud e Benjamin Biolay fazem o mesmo. Eles atuam, mas, ao mesmo tempo, são. E nesse feitiço de imagens, tornam-se duplos de si próprios, figuras que sorriem como desenhos apaixonados. Esse deslizamento, esse deslocamento, não é acaso – é a própria essência do ofício do ator: estar aqui e, ao mesmo tempo, estar em outro lugar.

E então, o centro do filme: alguém que sonha ser outra pessoa. Uma atriz que se dissolve na silhueta do pai idealizado. Sob os holofotes, Chiara busca seu reflexo, deseja ser vista não apenas como herdeira, mas como intérprete de si mesma. Então, o jogo se intensifica: veste-se como ele, assume seu andar, seu terno, seu chapéu, seu bigode esboçado. Mas não há farsa, não há paródia. Apenas um rito de passagem, um pacto silencioso com a ilusão. Isso é cinema. Isso é teatro. Isso é o desejo profundo de se perder para, enfim, se encontrar. Talvez seja uma comédia à italiana, talvez um sonho infantil, talvez um exercício de maturidade. Em tal cinema, ser ator é isso: é vestir um nome, habitar uma pele que nunca será sua por completo e, ainda assim, interpretá-la com toda a verdade possível. A cena segue, o espetáculo nunca acaba.

RATING: 63/100

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FILMES · CANNES · MOSTRA SP

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