A IMAGEM QUE FALTA, as memórias que se foram, se perderam, esquecidas, soterradas, queimadas… Asmae El Moudir se vê em uma foto e não a reconhece, então recria para si uma história e nos filma um faz de conta no quarto, casas de papelão e bonecos de barro, para relembrar um mistério. E ao fazê-lo, revisita os traumas da sociedade marroquina, um pouco de sangue, uma casinha de bonecas donde uma menina sozinha se acostumou a brincar, não ela, mas a avó-matriarca presa ao seu mundo, sempre a ver o que havia e desver o que se precisava. Seu filme é um conto lúdico, donde a “cineasta-jornalista” investiga tão somente as pequenas mentiras da infância, dessas contadas para tranquilizar, mas que agora, em uma atmosfera que equilibra surreal e real, se torna um brinquedo narrativo surpreendente para trazer a família, a cidade e a verdade aos holofotes.
Portanto, um documentário encenado, donde a própria família veio ao palco – uma cidade em miniatura – e lá, cada um contar sua história, falar e falar enquanto a câmera lentamente preenche esse argumento com seus pequenos fantoches, cheios de fome e medo, sonhos e esperança, as lembranças aos poucos desenterradas, um subconsciente coletivo revelado, enquanto a vó espreita, indo e vindo em silêncio. As estatuetas são expressivas: seus rostos são tristes, felizes, cheios de lágrimas ou marcados pela dor, mas elas se (re)animam para a vida, enquanto se revelam as mentiras. E logo a câmera questiona, se expande, da primeira foto de infância que nem da cineasta é, mas a mãe diz que sim, outras omissões são descobertas, voltamos aos anos 80, aos anos de chumbo, aos motins tristemente silenciados. E outras (poucas) fotos para mais história…
A questão da imagem (ou falta dela) é uma forma relevante para falar de um país – o Marrocos – donde existe apenas o mínimo para documentar. Somente uma foto, por exemplo, do dia da Revolta do Pão sobreviveu por todos esses anos: uma foto em preto e branco de pessoas mortas em uma rua. Todos as outras foram destruídas. Não existem arquivos nacionais, o cinema idem. O que resta são as memórias e isso moldado em cuidadoso cinema-artesanato: o próprio pai da cineasta recriou o antigo bairro de Casablanca e as casinhas. A mãe bordou as roupas dos bonecos de pequenos retalhos de costura. A cineasta faz o resto, a direção (de arte) para mostrar o cotidiano, a vida na vizinhança e ali, construir uma narrativa em progressão dramática, ora em crônicas leves, brincadeira infantil cheia de humor e olhar inocente, ora em picos emocionais como os relatos macabros de opressão política e prisão. Um conto – como as memórias – que surge em fragmentos e cuja pequena encenação se encaminha para uma catarse: o confronto com a avó, essa personagem intimidadora que se esgueira pela película, reclamando da aparência, quebrando seu retrato, mas cujo olhar, você vê, ali guarda um segredo, o medo, ou a repressão de toda uma existência. Ela é “A MÃE DE TODAS AS MENTIRAS”, como diz o título, precisou ser assim.
RATING: 74/100
TRAILER