Clara Sola

Uma história sobre empoderamentos: de uma mulher, outrora Clara, outrora menina-santa, outrora alguém sob restrito patriarcado, ela controlada com rigor pela mãe, seus desejos completamente reprimidos e – ao longo do filme de estreia de Nathalie Álvarez Mesén – vai sozinha despertando, sem filtros, sem concessões, sua pequena rebelião. Então, nesse mundo governado por normas e consumo retrógrados, senão uma remota vila costarriquenha, vemos um ato de insurreição, agora ela é CLARA SOLA em plena desobediência, em cura de si mesma, na (sua) natureza, mesmo que nesse caminho se incendeie tudo: a religião, os costumes, todos os relacionamentos e queima. Queima tudo, como fênix um dia o fez, porque Clara está empoderada e o público regozijado.

Há algo de espiritual nesse filme, certa liberdade, uma força oriunda de memórias de infância, de conexões com a terra, os insetos, a lama… é uma relação muito íntima entre a câmera, a protagonista e o cenário exuberante. Talvez seja uma retratação pela visão “muito moderna e inútil” que os humanos estejam separados dessa “natureza” ou em constante intenção de domá-la. E é por isso que o mundo está onde está hoje. Clara reconhece que a natureza e ela mesma são uma só entidade, e ela está curiosa sobre o que acontece no subsolo da mesma forma que está curiosa sobre si mesma. Tal curiosidade se vê pelo toque, uma sensação muito visceral para aproximar o público da maneira como a personagem experimenta o mundo com seus animais, o corpo, as plantas, a água, o fogo e a magia sutil. Não à toa, o realismo mágico borbulhe aqui e acolá, não só porque é relevante nessa cultura latino-americana – Gabriel García Márquez em mente -, mas também por ser um elemento inerente aos espaços donde a história se desenrola, porque todo o filme é natureza o tempo todo – e tal natureza se conecta ao divino, além da compreensão humana.

Nisso se opera um milagre donde a câmera observa pacificamente o desenrolar, talvez como um observador onisciente diante de um sopro, uma palavra, a vida indo e vindo em seu pequeno habitat, a música idem para elevar certas cenas. Talvez seja a própria Yuca, a égua branca cuja cor brilhante ressalte aos olhos diante do verde da floresta. Um animal de brancura ímpar, que nos diz pureza, e que se relaciona com Clara pelas mesmas metáforas: uma mulher que não pode se esconder, assumida como tão “pura” ao ponto de curar as pessoas, que é um papel que ela não tem interesse em cumprir. Se pudesse, rolaria na lama, como de fato o faz em busca de seu “eu” verdadeiro. De certa forma, Yuca também funciona como um prenúncio da própria libertação de Clara. Ele precisa fugir, ser livre. Ela também.

A performance de Wendy Chinchilla é muito física, uma atriz em pleno controle do corpo. Seu personagem é complexo, muito quieto e sereno, embora nas entrelinhas haja uma força descomunal. Alguém que na superfície poderia parecer frágil, mas, se lhe agarrar pelo pulso, pode lhe esmagar. Há uma gama de movimentos de Wendy dentro de Clara, você sente, o que acentua a sensação da protagonista estar presa dentro do próprio corpo, como se este fosse muito pequeno para ela, porque ela em si é gigantesca. Basta um olhar para perceber, sentir, sim, esse é um filme de uma mulher, e ela queima.

RATING: 71/100

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FILMES · CANNES · MOSTRA SP

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