Babi Yar. Context

BABI YAR. CONTEXT é tão somente escuridão, cinema de suster os sentidos, sentir o sangue gelar, a terra esmagar, um ataque ao cronocídio que marca a angústia dos segundos e lhe açoita com visões e angústias – a execução sumária de 33.771 judeus na ravina de Babi Yar, norte da Ucrânia, em setembro de 1941 – uma tragédia devidamente documentada pelo exército alemão e, depois, a imprensa americana que veio testemunhar o inconcebível, contudo um assunto que logo foi tabu em Kiev já nos anos 70, mesmo nos anos 50, imediatamente após a guerra, tal evento já era soterrado em uma mortalha de silêncio. E hoje, até então esquecido na mais medonha das trevas, é outro episódio do genocídio que muitos questionam, mas está ali, preto no branco, exumado nesse assombroso filme de Sergei Loznitsa.

Um filme que incomoda, sem dúvida um desconforto. A memória disso é vergonhosa e assustadora. Em “Vida e Destino”, de Vasily Grossman, há uma passagem – uma carta escrita por uma mãe judia ao seu filho, pouco antes de ser levada para o gueto. Este texto tem uma referência autobiográfica: Grossman cita a carta de sua própria mãe, que morreu no gueto de Berdichev. Ela escreveu que assim que os judeus foram declarados “fora-da-lei”, seus vizinhos no apartamento comunitário a expulsaram do quarto e ela encontrou seus pertences empilhados no porão. Não foi nem o Partido Comunista, nem as autoridades soviéticas que o fizeram, detalhe, foram seus vizinhos que a expulsaram do apartamento. Eles simplesmente disseram que ela não tinha mais o direito de viver lá. Mais tarde, quando ela foi para o gueto, só havia um homem que a ajudou a carregar suas coisas e lhe emprestou algum dinheiro. Este foi um ato singular e inesperado de bondade. Todos aqueles que se esperava ajuda e apoio – seus amigos, colegas e alunos – se afastaram dela. Na rua, ela ouviu os vizinhos brigando sobre seus móveis restantes antes mesmo de sair do pátio. Isso é um pouco sórdido, infelizmente da natureza humana.

E diante desses relatos, um extenso material de arquivo, o cineasta reconstrói o contexto histórico da vida em Kiev ocupada por alemães. Muitos oficiais e soldados trouxeram com eles câmeras de cinema amadoras e filmaram a vida diária na cidade. Essa filmagem não era adequada para os noticiários de propaganda, mas é um material fascinante de um tempo, todos esses fragmentos de vida, idos 1941-1943, de diferentes qualidades e estados de conservação, aqui reunidos e devidamente contextualizados para uma narrativa de época, quase um cinejornal que antecede o genocídio. São peças raras de filmagem , muito material inédito esquecido por décadas – ninguém nunca as viu, nem mesmo os historiadores especializados no Holocausto. O que confere certa sensação de abrir uma cápsula do tempo, ainda que terrivelmente hedionda: Loznitsa novamente estuda a desumanização, a perda da humanidade por um ser humano e vai além, nos mostra tais imagens para assistirmos, horrorizados, com nossos próprios olhos.

RATING: 73/100

CONTEXTO HISTÓRICO

Na Ucrânia não há judeus. Em nenhum lugar – não em Poltava. Karkov. Kremenchug. Borispol. Não em Lagotin. Você não verá os olhos negros e cheios de lágrimas de uma jovem, não ouvirá a voz arrastada e triste de uma velha. Você não verá o rosto moreno de uma criança faminta em uma única cidade ou em uma das centenas de milhares de guetos. Quietude. Silêncio. Um povo foi brutalmente assassinado. Assassinados são artesãos idosos, mestres conhecidos do comércio: alfaiates, chapeleiros, sapateiros, latoeiros, joalheiros, pintores de paredes, peleiros, encadernadores; Assassinados são operários: porteiros, mecânicos, eletricistas, carpinteiros, pedreiros, serralheiros; Assassinados são caminhoneiros, tratoristas, motoristas, marceneiros; Assassinados são moleiros, padeiros, confeiteiros, cozinheiros; Assassinados são médicos, terapeutas, dentistas, cirurgiões, ginecologistas e bioquímicos, diretores de clínicas universitárias, professores de história, álgebra, trigonometria; Assassinados são conferencistas, assistentes de departamento, mestres e doutores de várias ciências; Assassinados são engenheiros – metalúrgicos, construtores de pontes, arquitetos, construtores de navios, pavimentadores, agrônomos, agricultores, agrimensores; Assassinados são contadores, guarda-livros, comerciantes, fornecedores, gerentes, secretárias, guardas noturnos; Assassinados são professores, costureiras; Assassinadas são avós que sabiam fazer canja de galinha e fazer strudel com nozes e maçãs e assassinadas são avós que não sabiam fazer nada a não ser amar os filhos e netos; Assassinadas são mulheres que foram fiéis a seus maridos e assassinadas são mulheres frívolas; Assassinados são belas jovens, estudantes sérias e animadas colegiais; Assassinadas são meninas que eram pouco atraentes e tolas; Assassinados são corcundas; Assassinados são cantores; Assassinados são cegos; Assassinados são surdos e mudos; Assassinados são violinistas e pianistas; Assassinados são crianças de três e dois anos; Assassinados são idosos de oitenta anos que tinham catarata em seus olhos turvos, dedos frios e transparentes e vozes baixas e enferrujadas como pergaminho; Assassinados são recém-nascidos que sugavam avidamente os seios de suas mães até seus momentos finais. Assassinados são todos, muitas centenas de milhares de milhões de judeus na Ucrânia.

Esta não é a morte de indivíduos em guerra que tinham armas nas mãos e abandonaram casa, família, campos, canções, livros, costumes e contos populares. Este é o assassinato de um povo. O assassinato de casas, famílias inteiras, livros, fé. O assassinato da árvore da vida. Esta é a morte de raízes e não de ramos ou folhas, é o assassinato do corpo e da alma de um povo. O assassinato de vidas que labutaram por gerações para criar milhares de artesãos e intelectuais talentosos e inteligentes. O assassinato da moral, dos costumes e das anedotas de um povo, passados de pais para filho. Este é o assassinato de memórias, canções tristes e contos épicos de bons e maus momentos. A destruição de casas de família e de cemitérios. Esta é a morte de um povo que viveu ao lado do povo ucraniano durante séculos, trabalhando, pecando, praticando atos de bondade e morrendo ao lado deles na mesma terra.

Trecho do livro “Um Mundo sem Judeus”, de Vasily Grossman,
novembro a dezembro de 1943

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REVIEW · CANNES

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