Black Medusa

BLACK MEDUSA é tanto o retrato de uma jovem quanto o retrato de uma cidade. É um filme de gênero sobre a questão do gênero. Do thriller à fantasia, passando por certos códigos de filme noir com a figura da femme fatale ou mesmo o thriller com a figura do serial killer, tal cinema desvia as expectativas sobre seu tema e constantemente oscila entre gêneros. No imaginário cinéfilo lembra algo entre GAROTA SOMBRIA CAMINHA PELA NOITE (Ana Lily Amirpour, 2014) e o recente BELA VINGANÇA (Emerald Fennell, 2020), mas de fato é inspirado em clássicos cult, os filmes de Abel Ferrara e Brian De Palma – SEDUÇÃO E VINGANÇA (1981) e VESTIDA PARA MATAR (1980) -, embora sem a mesma carga catártica associada ao cinema de exploração dos anos 80. Da mesma forma, não oferece respostas fáceis ou diretas, sabendo que a vingança nunca será uma solução. É mais uma leitura nova e única sobre essa Tunísia contemporânea, através da vida dupla de Nada (Nour Hajri), onde a monotonia diurna é contrastada com a violência noturna, isso numa sucessão de desgostos e preocupações profundas.

Então, o filme de estreia dos irmãos Youssef & Ismaël Chebbi se constrói por esse mistério e atmosfera: é Nada em seu olhar vazio, o rosto inexpressível, a tela em branco, ao longo de uma jornada-filme de (in)suportável dor e entusiasmo em infligir dor. Contudo, quem de fato é essa mulher? Ela não fala. Ela não ouve. Pouco é revelado sobre seu passado, pouco é revelado sobre suas motivações. O que sabemos é que ela foi abusada sexualmente. Ela foi violada. Ela está com raiva e quer sangue.

E é pelos olhos de Nada que vemos a justiça e a sentença. Seu tribunal é a vida noturna tunisiana, especialmente os vários retratos dos homens que vagam por este mundo. Ela primeiro os ouve, depois se torna uma agente de destruição. Diante do constante silêncio, os homens se sentem confortáveis em lhe contar vantagem, esses retratos cheios de ego e complexidade em um mosaico de afetos. Já a fotografia monocromática, a iluminação expressionista, tudo aumenta o distanciamento crescente da protagonista em suas presas insignificantes. Logo, ela também se sente confortável em julgar. O ato de matar se transforma em obsessão mecânica: uma fixação quixotesca que se transforma em sua principal razão de ser. Um ato de desafio.

Como contraponto aos retratos masculinos, surge o retrato de outra mulher, Noura (Rym Hayouni). Ela escolhe ficar na Tunísia enquanto seu próprio país está em pleno caos. Ela está mais confortável em um país estrangeiro? Ela vive sua homossexualidade em um ambiente mais seguro? Ou ela simplesmente segue na desilusão de viver? De certa forma, Noura é a única pessoa que olhará para (o) Nada além do mero desejo sexual. Isso a levará a descobrir os segredos profundos desse amor, mesmo aceitando seu lado violento e destrutivo. Mas Nada não quer ser salva…

E o que vemos é uma forte personagem feminina lutando para se libertar das cadeias da sociedade. Uma mulher zangada e rebelde criando uma (pseudo) realidade fora de todas as regras sociais e morais conhecidas. Uma protagonista além do bem e do mal. E o filme nesse descobrir sentimentos depois de pensar que eles não são reais, um drama criminal sobre fraternidade, feito de elipses e percepções e migalhas para ao final se obter um quadro completo (e único): o retrato feroz de uma mulher estuprada que se recusa a ser vítima em um patriarcado tóxico.

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista com os diretores, em Rotterdam, bem como do material de divulgação cedido pela Utopia Films
RATING: 73/100

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REVIEW · ROTTERDAM

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