Isso não é um Enterro, é uma Ressurreição

A raiva de não pertencer. A fúria de se sentir deslocado… já em 2019, o cinema de Lemohang Jeremiah Mosese agonizava: com MÃE, ESTOU SUFOCANDO. ESTE É O MEU ÚLTIMO FILME SOBRE VOCÊ, seu país já convalescia no chiaroscuro, as imagens – muito duras e cruéis – nos marcavam sem deixar um sulco, um risco, uma sombra sequer. Como o título anunciava, ali estávamos sufocando na sala escura, sem ar, sem vida, apenas essa mãe Lesoto se despedindo, ela rendida à marcha do progresso, esse câncer que inunda a terra de ódio e lagrimas e nos deixa catatônicos diante de um povo – o diretor incluso – perdendo tudo o que têm, a identidade, sua terra, seus rituais… Agora, um ano de vigília depois, não há mais lagrimas para a velha viúva: diante dos olhos secos de Montoa tudo se passou, água e fogo, inundações e miséria, morte e vida, e o diretor filma sua história, a paisagem, móvel e precária e devastada, a planície que virará mar. Paisagem que se torna um ciclo e se torna o espelho de uma mulher – que tudo perdeu, o marido, os filhos, os netos – e agora se agarra à terra, à chama divina. Sim, ISTO NÃO É UM ENTERRO, É UMA RESSURREIÇÃO, esse filme é uma reconquista!

Um cinema descalço feito de frustrações e muita, muita raiva. Esse grito de desespero gotejado em película pelas imagens saturadas, um opressivo e claustrofóbico formato 4:3, a câmera sempre em busca dessa velha atriz – Mary Twala Mlongo -, suas rugas, sua expressão debilitada, a consciência desgastada, a idade e a dor, tudo tão frágil e melancólico. “Não quero voltar a dormir, então não preciso mais acordar”. A mulher está exausta de tanto viver, viver nessa pátria mãe que não lhe pertence. Diante dela, o público se apequena, é uma criança ante os valores ancestrais, a perplexidade dos habitantes. Somos um neto diante da avó – a conexão é imediata, quase mítica – e ela nos guia pelo realismo mágico com uma frieza quase documental.

A projeção seguindo nesse tom solene, o rigor quase em um cortejo fílmico, a trilha tão somente um toque de lesiba, como se o narrador nos quisesse hipnotizar com essa fábula humilde donde Mantoa se despe completamente, indo em direção à morte certa, de encontro à terra donde sempre viveu e deseja descansar. Os últimos frames, as imagens diante de nossos olhos extasiados e nossos olhos diante de uma menina, sem pai, nem mãe, que tudo testemunha, de certo não é um enterro, mas a ressureição. E à ressureição ela caminhará com seu povo. Essa é a herança que Mosese nos deixa.

Mary Twala Mlongo faleceu em 4 de julho de 2020, aos 81 anos.

RATING: 79/100

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