“D’este viver aqui neste papel descripto”, uma carta, um livro, um filme, assim feito por um homem aos 28 anos, na privacidade de seu relacionamento com a esposa, isolado de tudo e de todos por dois anos, durante a guerra em Angola. E fê-lo sem nunca pensar que um dia seria lido por qualquer outro. Mas foi… E a poesia ali contida, nesses papeis, rascunhos e esboços, seja qual for a abordagem – literária, biográfica, um documento de guerra ou de um conto de amor -, nós sabemos, é extraordinária em todos os aspectos.
A história data de 1971, mas começa um pouco antes, no verão de 1966, na Praia das Maçãs. Ali, António Lobo Antunes conheceu Maria José. Esse é o paragrafo. A sentença vem depois: Eles namoraram, por fim casaram em 1970. Ela engravidou um mês depois. Ele partiu 6 meses adiante, à guerra, à Angola. Daí veio as cartas.
Em palavras, tratam do tempo, de figuras mitológicas, alguns personagens e citações, poemas, livros ou autores, com a linguagem relativa à África, à guerra e jargões da época. Falam de amor, basicamente. E saudade.
Em película, tratam de um medico no exilio, em um ambiente violento, pobre, extremamente ruinoso. Na incerteza dos eventos, o médico escreve sua odisseia, o serviço militar, os soldados, enquanto lá de Portugal, a esposa as lê. Um casal unido assim, por borrão e tinta, a guerra e o interior, a brutalidade e o idílio, a vida como ela é diante da vida como seria em Lisboa. Preto no Branco.
E, por fim, a guerra e seus muitos personagens: Dali poderia haver outras cartas, livros, filmes, tamanho o sentimento de fraternidade, amizade e lealdade entre os homens e sua capacidade de (sobre)viver ao caos. Alguns morreram. Vários deixaram famílias, esposas, noivas, amigos, amantes. Um país inteiro ficou em silêncio, e assim ajudou a silenciar um episódio inteiro de sua história. Restaram as cartas, as memórias, a tristeza, uma história de amor selvagem, um trágico conto de batalha e um filme biográfico sobre o mais importante escritor português. Ponto final.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela O Som e a Fúria, incluso a entrevista com Ivo M. Ferreira feita por Francisco Valente e o prefácio de “D’este viver aqui neste papel descripto”, editado por Maria José e Joana Lobo Antunes
RATING: 61/100
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