O Anjo Ferido

Uma exaustiva, extremamente suja e brutalmente perversa anatomia do mal, de uma semente que brota em quatro adolescentes diante da Fome, da Guerra, da Peste ou da Morte. Quatro contos morais, quatro cavaleiros do Apocalipse, quatro jovens que queimarão suas asas para encontrar um lugar no mundo. E são essas as “LIÇÕES DE HARMONIA” que o cazaque Emir Baigazin nos retoma com absorvente minúcia: A dissecção da crueldade, do mito do “anjo caído”, afinal do mecanismo que provoca essa doentia psicose e desde o inicio de sua gestação. A marginalidade, a solidão, a exclusão, tudo chicoteando em uma talentosa mente, perfeccionista em pormenor, extremamente ousada e compulsivamente escrupulosa. Um filme que se escreve com rigor antropológico e que, aos poucos, ilumina a violência da cadeia alimentar, sempre de mãos dadas com a evolução (ou involução) dos protagonistas, cada vez mais obscuros, cada vez mais obsessivos.

Como em “Senhor das Moscas”, de William Golding, a barbárie é uma possibilidade sempre em aberto e nesse lento e insidioso ruminar de maldade, afaga os sacos de farinha de Zahras, silencia a voz angelical de Balapan, vagueia pela caverna misteriosa de Zhaba, ou mesmo pela mente arrependida de Aslan. Quatro adolescentes, senão meras ferramentas para um cineasta obcecado em seu tema (ou tormento?). Ali, observando essa (pouca) humanidade com uma lupa. Estudando-os. Dissecando-os. Orai por eles. “E se ninguém virá por nós e teremos que viver aqui para sempre, então não devemos viver como seus filhos”.

E é por esse inferno, talvez no limbo ou no Cazaquistão, é que o cineasta lapida seu cinema. E o faz à semelhança de Hugo Simberg: “Quatro meninos” taciturnos carregando o peso do mundo. O anjo gravemente ferido. Seus olhos vendados. Suas asas ensanguentadas. Seria a justiça? Mas que justiça pode haver nessa miséria? Tal procissão passa pelo ermo. A projeção o segue em sua quintessência. Quatro capítulos, quatro dilemas, quatro jovens exercitando seu livre arbítrio, embora saibam que as escolhas sejam um erro. Os relatos se amontoam, criam unidade de uma maneira muito sutil. A ideia de uma história (in)completa, um movimento que se perpetua. Ação e reação. Causa e consequência. Outra “lição de harmonia” para citar a “irreversibilidade da vida”. Que continua, não importa o quê. Essa é a reflexão. Sem moralismo, nem escrúpulos. Apenas o dano latente.


“The Wounded Angel”, de Hugo Simberg (1903)

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Capricci Films, incluso a entrevista de Emir Baigazin
RATING: 74/100

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