Misericordia


Os primeiros trinta minutos fazem crer que estamos diante de uma nova versão de TOM NA FAZENDA, talvez um remake do (saudoso? desaparecido? recluso em um monastério?) Xavier Dolan. Mas não se iluda, pois Alain Guiraudie dá um coice na expectativa e vira tudo do avesso. O que começa como um drama psicológico, logo se desfaz em sessão de luta, aparições eclesiásticas, cogumelos do campo (dos suspeitos) e um nu frontal digno de uma pintura sacra. Tudo isso, pasme, para nos contar uma história sobre… perdão (!). Sim, UM ESTRANHO NO LAGO tem contas a acertar com o Altíssimo, e nós, humildes fiéis da cinefilia, nos divertimos com a missa.

A ideia de tanta MISERICÓRDIA, de “entender o outro apesar de tudo”, é o alicerce do filme – mas um alicerce meio trêmulo, como uma capela antiga prestes a desabar. Nos primeiros minutos, é impossível entender o que une tantos personagens ou o que exatamente o protagonista está tentando fazer ali. Tudo é insinuado, como se estivéssemos ouvindo conversa pela metade em um vilarejo onde até a floresta cochicha segredos. Mas uma coisa fica clara: o protagonista não está ali por acaso. Ele quer algo. Ou alguém. E esse desejo (latente? Inconsciente? Frustrado?) se disfarça, se infiltra nas relações tal qual um mofo emocional. Ninguém diz o que realmente sente, ninguém age de forma previsível. É um universo onde a paixão e o mistério brotam do chão, misturando-se às sombras do presbitério e à névoa matinal. O resultado? Uma confusão onde não sabemos quem está manipulando quem, quem esconde um passado sombrio e quem só queria comprar pão, mas descobriu tarde demais que a padaria fechou para sempre.

Se no filme anterior, NOBODY’S HERO, o tempo era o grande vilão de tanta ansiedade, MISERICÓRDIA olha para o passado com aquele olhar nostálgico e desconfiado de quem revisita um álbum de fotos antigas. Não há flashbacks aqui, apenas fragmentos de um tempo que se insinua nas paredes de pedra centenárias, no presbitério que já viu dias mais movimentados, nas ruas vazias que sussurram histórias de um passado não tão distante. A relação entre os personagens é uma terra de ninguém: parece, um dia foram amigos, dividiram segredos e talvez até um cigarro proibido atrás da igreja. Agora, no entanto, há um desconforto, um silêncio carregado de algo não dito. O roteiro brinca com essa tensão, acende uma vela que pode tanto ser uma tragédia ou uma piada.

E tudo filmado no outono, esse impressionismo rural que começa num funeral e termina no cemitério, sob um luar desconfiado: Um homem retorna ao lugar da sua juventude e, tal qual uma maldição silenciosa, vai sendo tragado de volta. O crepúsculo é o pano de fundo perfeito: folhas secas no chão, um sol tímido, neblina que esconde mais do que revela, quase um flerte descarado com o noir – um noir rural, daqueles onde o assassino pode estar de boné surrado e botas enlameadas. Não pense em Hitchcock ou Fritz Lang, mas sim em Chabrol, com sua dança entre o sombrio e o sarcástico. Há uma ironia latente aqui, um jogo de misericórdia e zombaria, uma forma de amar as pessoas apesar de tudo, mesmo quando elas talvez não mereçam. Ao cineasta, então, cabe filmar, uma direção contida, calma, mas que no fundo carrega uma escuridão, talvez um segredo enterrado na clareira.

No centro de tudo, a moralidade se desfaz como um biscoito esfarelado. O que é certo? O que é errado? Será que resolvemos essas questões ou só fingimos que sim? Os assassinos devem ser punidos? E nós, meros espectadores, temos mesmo as mãos limpas diante do caos do mundo? O padre do filme assume a responsabilidade de nos lembrar dessas perguntas desconfortáveis. MISERICÓRDIA não dá respostas, mas espalha interrogações como sementes no solo fértil. No fim, há algo de mágico nisso tudo, algo que oscila entre o trivial e o transcendental, entre a lama do cotidiano e uma espiritualidade que paira no ar como um eco. E no meio desse turbilhão, seguimos em frente, tentando entender se vemos um drama, uma comédia, um mistério… ou apenas um campo de cogumelos crescendo depois da chuva.

RATING: 76/100

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FILMES · CANNES · TIFF · MOSTRA SP · FILMES LGBT

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