Memory Box

Um filme de badulaques visuais, linguagem muito jovem e essa paixão incondicional pela fotografia, de como o passado de fotogramas antigos pode se conectar ao presente de conteúdo digital, e isso aos olhos de uma jovem lendo na surdina os diários da mãe, tão somente cadernetas e correspondências dos anos 80, lá do Beirute: histórias de vida, de cada momento da adolescência, também sobre a guerra civil que se alastrava ao redor. E a recordação se formulando em um sudoku de cenas, as tais anotações ganhando animação, forma, personagens, efeitos e prosopopeia enquanto a trilha improvisa um rock´n´roll de fitas cassetes. É bem bonitinho. Cinema papel de carta.

E sim, um filme bem pessoal, feito de fato com todo o material de infância dos diretores – Joana Hadjithomas & Khalil Joreige. Cada um se expressando de sua forma, por suas paixões, passado, presente, toda a dor do exílio, muitos artefatos documentais e recreação ficcional, arquivos reais e reconstituídos, uma espécie de diálogo, seja entre experiências ou mesmo entre gerações. O resultado é uma ampla gama de possibilidades, artisticamente falando, vários fios narrativos, uma cartografia para histórias de amor. E além, a animação surge e desfoca linhas e limites: O que é real? O que é fictício? Então, a narrativa vai ao limbo das memórias para rever um país que se foi, um momento que se perdeu, mas alguém registrou em polaroids e super 8.

Não há nostalgia para esses tempos, vale dizer no contexto da guerra, mas a intenção é – afora revisitar a materialidade dessas imagens – percebê-las em relação à Internet e às mídias sociais para comparar as duas épocas. Essa relação com a imagem através dos tempos – fotos em filme, fotos digitais – também muda uma série de percepções, a perenidade de um registro com seus segredos e palavras não ditas, bem como a inexatidão implicada em lembrar e por outro lado, a conexão tecnológica dos Facebook, WhatsApp e Instagram, o transbordamento de informações, comunicação e compartilhamento, imediatismo e virtualidade. Hoje, a superabundância de imagens e informações é tal que o fluxo absoluto não pode ser totalmente processado e implica, inesperadamente, em algo semelhante ao esquecimento. Não à toa, as galerias de imagens em nossos smartphones evocam as telas compartilhadas e divididas do filme, e são mostradas como essenciais para a garota desenvolver sua própria imaginação. Ela acaba acompanhando a história de sua mãe, de um caderno e fita para o outro, assim como iria esfomeada por uma série da Netflix, e torna-se viciada na saga. Ela está tão absorta nesse passado que perde de vista o presente e se vê gradualmente desconectada dos amigos. Acaba por se perder em temporais paralelos.

A memória é um processo que também envolve sensualidade, gestos específicos, a textura do próprio filme. Era muito importante dar uma interpretação visual e tangível da imaterialidade da memória. Isso envolve e invoca estética, referências, música, mas também às vezes detalhes minuciosos, como o som do rebobinar de uma fita. Tal cinema permite ao público vivenciar essas emoções, infinitas formas de perceber a história, um fluxo contínuo de tempos, gerações e tecnologias, sem qualquer limite ou definição. Traz ainda uma sensação de pertencimento com seus caprichos, fragilidade, amanheceres e crepúsculos. MEMORY BOX, afinal, está vivo, você sente a conexão. E é imediata.

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista dos diretores, em Berlim
RATING: 71/100

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REVIEW · BERLIM

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