O Problema de Nascer

O PROBLEMA DE NASCER abre em sensações: nadar até a pele ficar enrugada; sentir o cheiro de terra molhada – e a floresta; ouvir o cricrilar dos grilos tão alto a ponto de acordar; pegar um gafanhoto nas mãos, senti-lo pulando entre os dedos para fugir… E esse desejo de sempre estar junto. Sentir o cheiro de cigarro e protetor solar. O filme começa e vemos as percepções de uma menina, tão agridoce como poderia ser, mas logo um certo estranhamento, essa mistura de drama e suspense, horror e ficção, a mesma frase dita em contextos diferentes como se fosse a dica de algo que queremos rejeitar: “Ficamos fora o dia todo e acordados a noite toda”.

Então, um androide em corpo de menina a olhar para o mundo – e o mundo olhando para trás. Alguém que não se importa com o propósito com o qual foi construído, se passará a vida como brinquedo ou companhia. Um simples objeto, nada mais. Algo que não deseja ser humano, apenas deseja o que está programado para desejar e que sente o que lhe foi predefinido e nada mais parece importar. É apenas um recipiente – um recipiente para nossas memórias e nossa imaginação que significam tudo para nós, mas nada para a criatura.

“Ficamos fora o dia todo e acordados a noite toda. Mamãe nunca teria deixado (mas ela não precisa saber sobre tudo)”, o robô repete e as sensações assumem outro contexto, as imagens insinuam uma estranha sobreposição de memórias e imaginação. O público fica irrequieto diante do que vê, mas ele realmente viu? A nossa experiencia de mundo, incluso a maldade, se confunde com a narrativa, nos mergulha nesse caos e ali, nadamos e nadamos até a pele ficar enrugada.

O conceito, sem dúvida, é inquietante, isso para o bem ou para mal: Sandra Wollner desconstrói um ato abominável – a pedofilia – reduzindo esse tema a quase um fiapo de narrativa e deixa ao público, o preenchimento dessas lacunas e significados, a elucubração veemente num estranho devaneio em que os princípios causais deixam de funcionar, se tornam inexplicáveis, e nos leva às profundezas caóticas do ser – e não à toa as cenas da noite, do trem, porque o filme se criva dessas contradições, dos vazios e ecos sombrios. A criatura neste filme não precisa de tal ficção. Nunca nasceu, nunca perguntará sobre suas origens ou a origem do mundo, e não precisa de fim, nem começo. O PROBLEMA DE NASCER, então, fica conosco, nossos lampejos de significados e apegos esmaecidos, os fantasmas que nos rondam e nos assombram, nosso julgamento pelo qual “Ficamos fora o dia todo e acordados a noite toda”.

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Cercamon, incluso entrevista com a diretora
RATING: 63/100

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REVIEW · BERLIM · SAN SEBASTIAN · MOSTRA SP

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