Nas palavras de Sônia Braga, “Clara é uma personagem que qualquer atriz se sentiria honrada em fazer. Uma pérola, um tesouro! Um retorno à alegria de pertencer à língua portuguesa. Dessa língua-mãe que raramente aparece na tela, mas as vezes no surpreende e nos embala nessa mulher, nessa idade, tantos sonhos”. Nesse filme, Clara é a pessoa que Sônia quer ser; Recife é o lugar onde Sônia quer morar. Clara tem a família, os discos, os livros para ler. Sônia quer todas as músicas, todos os livros! Clara tem a vista para o Oceano. Os amigos. A avenida. Sônia cobiça essa vida. E aos sessenta e poucos anos.
Clara mora de frente para o mar. Nesse Aquarius, a última reminiscência de uma antiga Boa Viagem, e isso no Recife. Jornalista e escritora, viúva e mãe, ela irá enfrentar as investidas de uma construtora que deseja sua vida demolida. Estilhaçada, dona do seu passado, presente e futuro, Sônia irá encontrar nesse conflito uma energia nova e incomum, muitas lágrimas, muitas gargalhadas, muitas histórias, muito amor por essa personagem. Pelas relações, pelas descobertas. E diante de seus olhos, ao redor, ao longe, esse mar, tão azul, que agora deságua em Cannes. Às Palmas… E porque não?
Um filme sobre as memórias, as marcas do tempo, os objetos. A cômoda da tia Clara. O apartamento que celebrou tantos aniversários. Sonia e esse edifício, ambos de alguma forma sob ameaça, o ataque da especulação imobiliária, verdadeiras bestas vorazes em seu balé de escavadeiras e tratores. Desse confronto, posterior conflito, vemos o choque de dois mundos e estilos de vida, de um lado, a vida ultra contemporânea, marcada pelo consumo conspícuo e sanitização generalizada; por outro, a de uma geração anterior, com base em “conviver” e no senso de comunidade.
Desse Big Bang, vemos uma estrela a orbitar por um microcosmo complexo, um lugar vazio, cheio de portas, paredes, e pátios, uma leve sensação de desconforto, de invasão, dO SOM AO REDOR sempre como ameaça. A câmera de Kleber Mendonça Filho ocupando os espaços, em vários ângulos diferentes, cada coisa ao seu devido valor. E nas entrelinhas, a violação latente, as janelas escancaradas como testemunha dessa invasão de privacidade, nossos olhos, o exterior. Por ali, vemos os conspiradores. Por ali, sentimos o medo. Mas tudo passa de repente, porque Sonia bota um disco para tocar e, ali, pontuar os gostos e os humores e, sim, preencher esse filme com as canções desse Brasil. Nesse belo apartamento que envelhece diante de nossos olhos e adorna essa atriz, seus cabelos, seus amores. Tudo meio que romanceado. Sem dúvida o melhor filme da competição em Cannes, a melhor atriz certamente. Palmas. Muitas palmas.
(*) Review livremente inspirado de declarações de Sônia Braga e Kleber Mendonça Filho nas mídias sociais e imprensa em geral, bem como no material de imprensa cedido pela Primeiro Plano FIlmes
RATING: 87/100
TRAILER