Luz Natural

Sob LUZ NATURAL, um filme de rostos e paisagens. Ou em outras palavras, em paisagens vistas através dos olhos de alguém, paisagens sendo relacionadas com rostos. E o rosto imóvel ou assim parece. O rosto de um soldado, outrora um camponês, agora comandante e todo o filme sobre ele, constantemente presente na tela e ainda assim, mantido à distância, quase sem qualquer movimento, frágil e desconhecido. A história é baseada em um romance de Pál Závada, mas não nos diz nada: nenhuma história pessoal, nenhuma motivação sequer, apenas a guerra em sua forma mais bruta, VÁ E VEJA sem recorrer à psicologia ou sociologia, antes ou depois, somente um homem presente. Um soldado que sente que essa guerra não é a sua guerra. E o filme todo nesse mau pressentimento, donde não se sabe qual é a missão.

Em nota, a inspiração é ANDREI ROUBLEV (Andrei Tarkovsky), FLANDERS (Bruno Dumont) e THREE DAYS (Sharunas Bartas), filmes que buscam um tipo de contenção com o que observam do protagonista, e como eles retratam a relação entre os personagens e o ambiente. Então, não à toa, esse retrato humano tão incomum, uma narrativa em constante hesitação, tão somente a marcha de um homem que vê, mas, ainda assim, não entende. Ao redor, essa guerra (a Segunda Guerra Mundial), o que coloca o protagonista em constante confronto, o questionar de sua imagem, a consciência, a fragilidade. Documentarista de carreira, o cineasta Dénes Nagy tão somente mostra as pessoas na tela, elas chegando ao desconhecido, em uma situação donde não sabem o que as espera, onde as coisas não são claramente nomeadas nem definidas. Seus personagens parecem desorientados em uma floresta semiescura, tateando à esmo pela neblina. Um cenário onde não é possível reagir de forma inteligente o suficiente para o que lhe cerca.

Também um cinema de não atores, rostos camponeses que mostram algo de arcaico, até inocente. O olhar carregando o traço do tempo. Dessa gente donde toda uma história é contada pelo modo de segurar um cigarro na boca, de como se corta pão, como se come, como se permanece em silêncio. Um elenco catado de fazendas de vaca e porco por todo o campo húngaro, homens entre 30 e 40 anos para o batalhão do filme, feito a milhares de quilômetros de sua casa, lá na Letônia Oriental. De certa forma, repete os mesmos eventos encenados pela história: pessoas simples, aleatórias, recrutadas com armas e uniformes e levadas à um país desconhecido, onde não entendem a língua local. Amadores com parco treinamento militar, em longas marchas com (e em) seus equipamentos extremamente pesados, dia após dia para a projeção-batalha, no enfrentar de tantos outros aldeões/camponeses russos desconhecidos (homens, mulheres e crianças também interpretados por camponeses locais) que eram, de certa forma, o mesmo tipo de pessoas que eles mesmos.

O resultado é uma cinematografia deslumbrante, ainda que distante: nas paisagens quase imóveis, em close-ups e retratos sob luz natural, na lentidão do movimento de câmera, mas também – mais incidentalmente– através das fotos que o “herói” é convidado a tirar com sua pequena câmera, tem-se a impressão de uma abordagem velada à fotografia. E de novo, voltamos aos rostos, na observação de rostos. Ser capaz de observar cuidadosamente um rosto como em uma fotografia e ali perceber alguma paisagem. E ali encontrar algo nas sombras, uma tragédia, algo imperceptível, mas muito preciso além da natureza, da aldeia, dentro das casas ou entre homens na fogueira, como se os sentidos estivessem em alerta para essa história que não existe, mas você percebe que existiu somente pelos olhos, um rosto silencioso. Sim, existe história nisso, todo um filme aliás e nada mais.

(*) Crônica livremente inspirada da entrevista do diretor, em Berlim
RATING: 69/100

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REVIEW · BERLIM · MOSTRA SP

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