Nossa Senhora do Nilo

Há algo de paradisíaco em NOSSA SENHORA DO NILO, esse lugar privilegiado, longe de tudo: um lago de águas prateadas no cume da mata, as camisolas alvíssimas das estudantes e suas risadas à noite nos dormitórios, as procissões rumo à lavagem da santa, tudo tão inocente e sereno. De fato, o filme (outrora o livro de Scholastique Mukasonga) abre em imagens deslumbrantes, uma natureza onipotente, o retrato de uma jovem se banhando, quase como se fosse um ritual de purificar… e novamente o cineasta afegão Atiq Rahimi se adentra aos reinos da memória e do sonho (como outrora o fizera em TERRA E CINZAS), mas aqui às portas fechadas de um santuário nas montanhas, um Liceu para meninas, filhas da elite ruandesa. Ao fundo, alguma avó nos conta essa história, talvez um conto ou uma lenda, sua própria história ou a história de seu país, enquanto a câmera se move graciosamente para o quarto onde as meninas dormem. Todos os sonhos de um povo ali presentes: um futuro tão belo e precioso, ainda que seja o prólogo de um massacre.

Sim, porque tanto o romance e o filme, ambos antecipam em duas décadas o genocídio popular de Ruanda, suas origens imaginadas nessa escola governada por freiras (e cotas) e donde as meninas estudam, algumas por supremacia, outras por sobrevivência e todas, sejam hutus ou tutsis, por um bom casamento no futuro. A eletricidade da narrativa, as consequentes intrigas, amizades, desejos, ódio, isso à beira da guerra civil, são retratadas em planos poéticos e – depois, no final – em sequências de terror, embora o genocídio não seja o cerne da projeção, mas o lento desenvolvimento de uma infâmia racista. E assim, as pressões políticas são apenas um fio que corre por trás de uma teia de outras histórias – poderes coloniais, folclore ruandês, gorila nas montanhas -, nada disso pode realmente explicar o extermínio adiante, nem é a proposta, embora o filme se encaminhe para isso.

O que se vê é uma fábula de leveza enganosa, a dança macabra de uma guerra de travesseiros, o silêncio das colinas cobertas de névoa. Atiq, em princípio, filma essa história com suavidade e beleza, isso emoldurado nos rostos e paisagens do lugar. E é extremamente poderoso, toda essa inocência descuidada, o sagrado inserido em cada frame, ali sublimado pelas jovens. Então, o rosto da santa descasca e a violência assume, nada mais é belo. Ao contrário, o brilho se desvanece repentinamente, a composição perde a harmonia, a imagem torna-se inquieta, convulsiva… o início da violência abala o encanto de toda a projeção. Não há mais Gloriosa, não há mais Modesta, a fantasia se desfaz, desvanece, todas as cores predominantes, o vermelho ocre do solo, o verde das colinas, o negro da pele, a brancura do nevoeiro, tudo se torna um borrão. E silêncio. Um silêncio de morte.

(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela Indie Sales, incluso entrevista com o diretor e roteirista
RATING: 73/100

TRAILER

Article Categories:
FILMES · BERLIM · TIFF · MOSTRA SP

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.