Eis a história de Don Diego de Zama, o livro de Antonio Di Benedetto, o filme de Lucrécia Martel: A longa jornada de um homem rumo às profundezas, não só um conto de perdição, mas uma suntuosa vertigem. A prosa de sonhos, a prosa sonhadora de um homem de lei, um juiz, um homem sem medo, cuja mente aos poucos se deteriora, isso no século XVIII, em algum lugar do Paraguai, ou da Argentina? Ou do Brasil? À espera de uma carta que nunca virá, fazendo o mínimo que puder, esperando e esperando, trabalhando e trabalhando, enquanto os Governadores vêm e vão e ele, submisso em cada tarefa, orgulho ou luxuria, mesmo nos rancores mais mesquinhos, nas fantasias mais paranoicas, se perde na vã esperança ou confiança de partir para a capital.
Então, ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (sul-americana), um homem, solitário e suspenso, em eterna busca. Sim, está calor, um leque ao fundo range, indo e vindo, como um pendulo de um relógio. Sim, a trilha sugere a hipnose, você está com sono, muito sono, um menino lhe sussurra num transe quixotesco. Sim, você está muito cansado, mãos lhe despem, lhe banham, lhe (en)cantam… “Diego, adónde va?”. À lugar nenhum… Zama está inerte em parábolas profundas e pomposas. O filme é outrO PANTÂNO. Diego está estagnado. Não há nenhuma notícia para ele. O mar lhe convida para uma viagem, mas ele não pode ir. A carta não chegou…
Em nota, a cineasta deseja avançar para o passado com a mesma irreverência que se tem quando avança para o futuro. Não o faz pelo documento preciso dos utensílios e fatos pertinentes, porque seu filme não contém pretensões históricas, mas, sim, invadindo um mundo que ainda hoje é vasto, com seus animais e plantas, mulheres e homens quase impossíveis de se entender. Um mundo (o ego?) que foi devastado antes de se encontrar e que, portanto, permanece em delírio. E do passado desse continente colonizado, tão borrado e confuso, donde é difícil pensar na propriedade da terra, nos despojos em que o abismo latino-americano foi fundado e tudo isso se emaranhando na gênese de um povo, desse expediente, Lucrécia filma a missão de Diego, um homem à caça de Vicuña Porto lá nos confins da consciência, justamente no coração desse mundo, perdido, perturbador.
ZAMA nos mergulha profundamente no tempo dos homens mortais, nessa obsessão, ilusão e agressão selvagem, nesta curta existência que nos foi concedida, através da qual nos deslocamos ansiosos para amar, atropelando exatamente o que poderia ser amado, adiando o significado da vida como se o dia mais importante fosse aquele que ainda não se viveu, e não hoje. E, no entanto, o mesmo mundo tão cruel que parece determinado a nos destruir, torna-se sempre a nossa própria salvação. Ora, “para os que não podem ver, a noite é mais segura” e, afinal, quando perguntado se queremos viver mais, sempre dizemos sim. E Zama não faz nada. Apenas vive.
(*) Crônica livremente inspirada do material cedido pela The Match Factory, incluindo notas da diretora
RATING: 84/100
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