O Abraço da Serpente

Eis o rio, a selva, um filme aos pés do índio que se move sobressaltado: A câmera de Ciro Guerra em claro flerte com esse Amazonas e desse encontro, de alguém que grita cada povo, Yukuna, Kobeu, Tukano, Wanamo, Karamakate, clamando por ajuda ao homem branco, tão sábio e tão doente, que nenhum xamã pôde curar, apenas um, os Cohiuanos, tão míticos e tão poucos, lá longe no rio Yari, que vemos a força e a destruição e, sim, um extraordinário cinema.

Talvez seja pela força e consistência desta direção, cuja emoção flui como essas águas, primeiro em um simples filete e, então se avolumando pelo leito, pela projeção, até nos arrebatar, mas não transbordar porque o rio – o filme – é estreito e rígido. Ao público, resta navegar pela tela em busca dessa tribo perdida, pelos muitos encontros aqui e acolá, tantos povos e tradições, a beleza pictórica, o paraíso antropofágico, os encantos mitológicos, donde também vive a serpente de abraço mordaz.

E nesse torpor, como um sonho aborígine feito de coca e cujo caminho se perdeu, há muito esquecido, o índio não sabe, o índio não lembra, porque as rochas não lhe falam mais, não lhe respondem, estão apagadas. Tantas memorias cravadas em pedra, planta e animais, todos em silencio, tudo vazio. Por ali, busquemos a apoteose, o “chullachaqui”, lá na montanha, na comunhão dos deuses, enquanto o rio prossegue – homem, índio e filme -, a canoa deslizando em cântico e cansaço, enquanto se vê o livro e se pensa. Se lembra… Passado e presente navegando juntos, o principio e o fim, Uraricoera acima, a chuva abaixo, esse rio cada vez mais tortuoso, mais pesado e precioso. E com eles, entre os homens do santuário, também o inferno: De Quina, de borracha, anos de submissão aos barões, assassinos e serpentes. Um sonho Caapi, impossível, mas consentido, bebido sem medo, porque Watoíma corta o céu. Oremos.

Dessa prece, são quase duas horas de imaculado cinema, congelado em frames, no preto e branco ou num espirito chulachaqui. Um river-movie pela serpente, pelas Missões, a borracha, a selva, seu abraço e sua linguagem do demônio que catequiza, reza, celebra, pela seringueira e seus tesouros, enquanto com a outra mão, massacra, açoita e perverte, senão o pior: O canibalismo e a ignorância, o sêmen do sol, de plantas sagradas e falsos profetas, a loucura, a ruina. Eis o pior de ambos os mundos. O chiaroscuro de uma canção “cohiuana” tocada em um velho gramofone.

Sim, estamos em guerra. Somos guerreiros. E pelo cinema de (Ciro) Guerra, ali diante da selva, guiado pelos sonhos, nessa jornada de solitude e silêncio, descobrimos quem realmente somos, senão andarilhos que se perdem e nunca mais voltam. Onde estão? Onde estão os chocalhos que as mães tocavam para seus bebes? Onde estão as histórias que os velhos contavam, os amores, as batalhas? Aonde foram? Os olhos do jaguar nos confrontam. Os colombianos estão chegando. Não importa. Estamos nessa Oficina dos Deuses, em eterno deslumbramento, o mais poderoso de tudo, desde a criação. Esse é o verdadeiro poder, gigantesco, ameaçador, mas que nos abraça literalmente e nos leva para lugares antigos, donde a vida não existe, nem mesmo seu embrião. Então nos resta beber. Sonhar. Ouvir. Sentir. Isso é “Medora Caapi”. O abraço pleno.

No me es posible saber si ya lá infinita selva
ha iniciado em mí el processo que há llevado
a tantos otros a la loucura total e irremediable

si es el caso, sólo me queda disculparme
y pedir tu comprensions, ya que el despliegue que presencie
durante essas encantadas horas fue tal que me parece imposible
describirlo em um linguaje que haga entender a otros
su beleza y esplendor; sólo sé que cuando regresé,
ya me había convertido em outro hombre

Theodor von Martius, Amazonas 1909

RATING: 80/100

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FILMES · SUNDANCE · CANNES · TIFF · MOSTRA SP · FILMES VOD

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