O banquete ingrato dos Ursos Dourados


Sabe como é dez graus abaixo de zero? Primeiro a sensação de que lhe arrancam a pele, depois o nariz e, finalmente a alma. E é assim por 10 dias, com ruas repletas de neve e perigosamente escorregadias, gorro, cachecol, casaco, toneladas de camisas e calças extras, bota de pele e meias e mais meias e mais meias. E tudo para nos sufocar nos primeiros degraus do Palast, onde a tela incendeia, ferve, queima e nos engole vivo com sua política e denúncia.

E assim é a Berlinale: Terra árida dos Ursos dourados que se alimenta de fel e conflito. Um soco na costela, um tapa na cara, uma faca no coração… O Festival não nos permite respirar. A ideia é provocar aversão (curiosamente causa o oposto) nos mantendo de olhos esbugalhados com blefarostatos e pingando colírio de lágrima artificial a cada filme, a cada cena. Sim, assim como os cientistas de LARANJA MECÂNICA, os ursos se asseguram de que não nos faltará nada.

Então eis o banquete, primeiramente servido no brejo de Versailles, em meio aos doces apodrecidos, os bombons azedos, o mau-halito da corte, e as deliciosas Léa Seydoux, Diane Kruger e Virginie Ledoyen, todas nuas em um lugar onde tudo futrica, tudo coça: As pulseiras ao redor dos pulsos, os ratos mortos na água, o enxame de mosquitos a encarquilhar seu redor… É o fim do mundo e é, curiosamente, o começo do Festival de Berlim aos olhos de Benoît Jacquot e seu assombroso LES ADIEUX À LA REINE.

E não melhora, piora: Angelina Jolie grita por mel e sangue. Então os ursos nos oferecem IN THE LAND OF BLOOD AND HONEY: Um ódio atávico envelhecido durante séculos que, em seguida, explode, destruindo qualquer passado ou sentimento e isso na ex-Iugoslávia, terra de ninguém, mas poderia ser na África…


E que África é essa que se filma e se exibe para o deleite dos Ursos? O Senegal de Alain Gomes, visto em AUJOURD’HUI, e sofrido por um personagem que retorna à sua terra natal para morrer, não de má saúde, mas por intolerância? Ou o Congo de Kim Nguyen, visto em REBELLE, onde uma menina é sequestrada para lutar nas milícias em meio ao caos, ao terror e as visões fantasmagóricas? Dizem que a menina é uma bruxa e, talvez por isso, fascinou a tal ponto com seus encantos – com sua interpretação – que levou um Prêmio: O Urso de Prata de Melhor Atriz.

Naturalmente não foi a única… Outras atrizes dominaram o Palast: A própria Diane Kruger na pele de Maria Antonieta (LES ADIEUX À LA REINE), Merly Streep na lata dA DAMA DE FERRO, Nina Hoss encurralada pelo Partido Comunista alemão (BARBARA), Agathe Bonitzer mantida no cativeiro de um pedófilo por 8 anos (COMING HOME), Andrea Riseborough recrutada pela IRA para bombardear Londres (SHADOW DANCER), Juliette Binoche surtada com seu artigo de prostitutas (ELLES) e, claro, a divã sequestrada por Brillante Mendoza: Isabelle Hupert.

E sequestrada pelo diretor tailandês, Isabelle desce ao inferno para desbravar uma selva cheia de plantas e outros seres vivos. Filmada esparsamente em mega close-ups, com câmera agitada, trêmula, em combate com escorpiões, cobras, sanguessugas, vespas e todo tipo de natureza horripilante, a atriz é a alma de CAPTIVE. Um filme que flerta com tantos outros de Werner Herzog (CAVERNA DOS SONHOS ESQUECIDOS, HOMEM-URSO), pela maneira que enxerga essa floresta perigosa e metafórica, azeda e acolhedora, grotesca e exuberante.

Enquanto isso, no Zeughauskino, Berlim viu o Melhor do cinema russo da década de 20 e 30, mas foi um português que nos deu a prova maior do que foi o cinema mudo: E é curioso ver como o cinema moderno de Miguel Gomes, visto em TABU (2012) se assemelha à aurora do cinema mudo de Murnau, visto em TABU (1931): São exatamente o mesmo filme e, ao mesmo tempo, radicalmente diferentes. No papel, são meramente histórias de amores impossíveis, cujo afeto é necessariamente maldito pelos deuses. Não importa que esse amor seja de um nativo de Bora-Bora destinado a uma jovem que será sacrificada à divindade ou que seja de um homem que queira a mulher grávida de seu amigo. Em ambos os casos, seja Murnau, seja Gomes, o tabu doeu. A crítica foi ao delírio e, lógico, os Ursos se assustaram com tamanha genialidade.


Não foi por mal… Simplesmente farejaram outros ventos, JUST THE WIND, que explodiu na competição, como faz naturalmente esses filmes sujos. Porque a fita de Bence Fliegauf nos dilacera e com ele, não somos nada, não temos nada, exceto o prazer amaldiçoado da sujeira. É terrível. É incrível. O Urso gosta. Não à toa é o Melhor Filme. Quer dizer, seria…

Porque os Irmãos Taviani foram à cadeia para ver César morrer. E se a Máfia e a Camorra foram responsáveis por tantas tragédias, nada mais natural que encenem, agora, a tragédia masculina de Shakespeare. Que revivam os prós e os contras dos atos incidentais de Brutus e os outros “homens de honra” que conspiraram contra seu amigo e imperador César. Que abracem esse dever (cada um em seu dialeto) a verdadeira essência do grande poeta, o drama insuportável que transparece, nos faz chorar, que enche o peito de sua imensidão. Eis a catarse. Eis o Urso de Ouro para CESARE DEVE MORIRE.

Então, os holofotes se apagam, o banquete termina, os Ursos hibernam… Sobra apenas a neve e o desejo de lugares mais quentes. Quem sabe a ensolarada Côte d’Azur, a beira do Mar Mediterrâneo? Os Ursos, sonolentos, fungam. Não gostam dos flashes, do burburinho, enfim, do glamour de Cannes. Sim, nunca gostaram: Lá são palmas e eles preferem tapas.

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FESTIVAIS

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